Situ/ação: aspectos do documentário contemporâneo

Situ/ação: aspectos do documentário contemporâneo

Data
2016

Curadoria
Paula Alzugaray

Local
Galeria Vermelho – São Paulo

Resumo
O objetivo do ciclo de vídeos é questionar aquilo que historicamente se categorizou chamar de documentário e discutir outras acepções para a prática documental. A mostra foi dividida em três programas distintos, apresentando aproximadamente 30 obras, com a participação dos artistas Carlos Nader, Cao Guimarães, Dias & Riedweg, Eduardo Srur, Janaina Tschäpe e Lucas Bambozzi, entre outros. Também foi realizado o debate “Arte, cinema e vídeo em encontro”, com participação de Felipe Chaimovich e Esther Hamburguer.

Situ/ação (aspectos do documentário contemporâneo)

O documentário cinematográfico esteve, durante boa parte de sua trajetória, submetido à etimologia da palavra documento (do latim docere: ensinar, mostrar) e às funções de revelar, dar a ver, denunciar. Mas o entendimento do documento está hoje em pleno redimensionamento, na medida em que, munido de celular ou câmera digital, qualquer um está instrumentalizado para assumir o papel de testemunha. O documentarista está “igualado” ao artista, ao amador ou ao turista, que, acidentalmente ou não, registra uma cena real.

Diante desse quadro, idealizamos um ciclo para desafiar o que historicamente se categorizou chamar de ‘documentário’ e discutir outras acepções para a prática documental. Flexibilizado de maneira a ocupar um extenso espectro de práticas artísticas, o documentário é alçado à condição mais de dispositivo do que de gênero cinematográfico. Nas mãos do artista contemporâneo, torna-se uma ferramenta com outros usos e funções, que incluem mapear processos, inventar personagens e construir territórios. Em vez da função clássica de “fazer ver”, produz uma revisão dos modos de ver: apenas entrevê a realidade, distinguindo-a de maneira parcial, subjetiva ou imperfeita.

Esse estado errante do documentário contemporâneo – que tramita do cinema à tevê e ganha impulso nas artes visuais e na internet – é o objeto de observação deste ciclo. Há três eixos de trabalhos em observação. O primeiro é formado por registros de ações artísticas e se propõe a pensar o compromisso entre performance e documentação.

A performance, que em primeira instância se impôs como crítica anti-mercadológica, está implicada com a negação da obra de arte. Sugere, no lugar da obra, o acontecimento e a situação efêmera, que a princípio não poderiam ser retidos. Curiosamente, quanto mais imaterial a obra de arte quer se tornar, mais objetos são gerados por ela – entre fotografias, textos, filmes ou vídeos. A documentação está umbilicalmente relacionada à performance e os trabalhos construídos sobre questões processuais têm forte interdependência em relação ao registro. Há casos em que a obra é o acontecimento, como em “Troco Sonhos”, de Ana Teixeira. Outros, a ação só se justifica por estar sendo registrada, como é o caso de “Atentado Sonoro”, de Marcelo Cidade.

Em qualquer caso, todos estão muito próximos da construção de ficções. Na performance ou na intervenção urbana, o artista inventa situações e nos arremessa a pergunta: que distância há entre uma cena criada e uma situação real? Jacques Rancière sugere: “Ficção não é o fato de contar histórias imaginárias. É a construção de uma relação nova entre a aparência e a realidade, o visível e sua significação, o singular e o comum”. Ficção é o que se produz a partir da realização concomitante de uma caminhada de três dias e de um filme. “Roamless”, de Veronica Cordeiro é, ao mesmo tempo, um registro de ação e um documentário sobre a arte na rua. A questão do lugar da arte, seu deslocamento para a rua, é apresentada também em “Tinta Fresca”, que realizei com Ricardo van Steen, e em “Arremessos”, situação criada por Caetano Dias, que coloca uma escultura para rodar no espaço público.

Faz sentido considerar a convergência entre a situação inventada pela performance e a intervenção sobre o fato, praticada pelo “documentário compartilhado”, do cinema verité, ou pela “dramaturgia de intervenção” do cinema brasileiro militante das décadas de 1960 e 70?

O que Janaina Tschäpe faz em “As Camaleoas” pode estar inserido no limiar desses dois territórios – a performance e o “documentário compartilhado”. O filme opera um tensionamento entre os recursos de fabulação e documentação: mulheres-de-carne-e-osso queixam-se de solidão e violência e reinventam a si mesmas, assumindo a identidade de heroínas.

No segundo eixo de trabalhos, do centro da ação, a câmera é deslocada para uma situação de invisibilidade e observação neutra. Esse posicionamento distante (ou com certo recuo) do acontecimento configura os testemunhos de situações reais. Aqui, o comportamento da câmera é mais parecido com o cinema direto norte-americano, um cinema de observação que, “como uma mosca na parede”, produz um testemunho sem jamais interferir na cena. Em “Leituras”, de Consuelo Lins, uma câmera de telefone celular capta leitores dos três e metrôs de Paris. Alexandre da Cunha, em “BMX”, apropria-se do real (da mesma forma como articula o objeto cotidiano em suas esculturas), quando registra a performance de um ciclista em Londres. “Kanon”, do artista sueco Jesper Nordahl, que espia um grupo de homens bêbados em uma praia, também poderia estar inserido em um cinema da não-intervenção. O vídeo aqui é uma janela, onde é projetada uma ilusão de mundo.

Tanto o ciclista quanto os bêbados ou os leitores confirmam a suspeita de que, para o cidadão comum, tornar-se um personagem aos olhos do outro é uma possibilidade iminente, real. Esse tipo de registro levanta a questão: podem os acontecimentos diante da câmera ser captados em espontaneidade, sem qualquer tipo de encenação? Ou a teatralidade é um princípio inerente ao comportamento humano (diante da câmera ou não)? Apresenta-se aqui a questão inerente a todo documentário: a relatividade entre representação e verdade.

Narrativa documentária, o terceiro eixo do ciclo, apresenta trabalhos que fazem uso de um ou mais protocolos documentais (entrevista, conversa, registro de cena real, narração de história verídica, testemunho pessoal etc.); ou que desmontam os mesmos protocolos e reinventam dramaturgias. O objetivo da seleção é evidenciar a ambivalência da condição documental: construída sempre a partir do diálogo entre a voz do documentarista e a voz do outro.

A voz do autor prevalece nos trabalhos que funcionam como ensaios, videodiários e narrativas pessoais. Caso de “Ariel”, de Claudia Jaguaribe e Mauro Baptista; “Gym Politics”, de Cinthia Marcelle e Jean Meeran, ou de “Realidade, Ficção e Capuccino”, de Tiago Judas. Documentário em forma de HQ, a história de Judas relata o momento em que o personagem Kocinas, criado pelo artista, foi descoberto pela família Kocinas do mundo real e friamente assassinado pelos próprios parentes. Embora com resoluções bem diferentes, esses trabalhos funcionam quase sempre como reflexões em primeira pessoa. São discursos que não pretendem se passar pelo real e aproximam-se da idéía do filme-ensaio, desenvolvida por Arlindo Machado em texto de 2004. No Brasil, “Congo”, de Artur Omar, seria considerado um precursor do gênero do ensaio cinematográfico.

Em “O Tempo Não Recuperado”, memória visual e fragmentos do arquivo de vídeo de Lucas Bambozzi são reorganizados em narrativa não-linear. Mesmo que possa ser interpretado como um ensaio autobiográfico, o trabalho explora as possibilidades do documentário interativo e compartilha as decisões sobre o filme com o usuário da web.

O cineasta português Pedro Costa sugere que “é preciso saber onde estamos e a que distância estamos do que filmamos”. Este é o projeto de Reinaldo Cardenuto Filho, que em seu deslocamento até a periferia de São Paulo investiga a produção videográfica nascente da região. A voz do outro se sobressai nesse tipo de trabalho com maior comprometimento de observação e articulação de contextos culturais ou sociais. Outro caso é a videoinstalação “Flim”, de Dora Longo Bahia, que com recursos não exatamente próprios do documentário, representa uma sociedade rachada entre brancos e negros: de um lado uma mulher branca toca um violino; de outro, uma negra recita a letra de uma canção, baseada na história real de um assassinato doméstico.

Dar voz ao outro e ceder a câmera ao outro, são atitudes fomentadas nos projetos antropológicos dos anos 1970. Essa postura repete-se hoje nas pesquisas de Cao Guimarães, Kika Nicolela e Diogo de Moraes. Em “Jornadas de um Office-boy e de um Moto-boy”, Diogo de Moraes opta pelo desenho e a gravação em áudio para o seu registro. Com isso, devolve ao desenho a qualidade documental que lhe foi roubada pela fotografia e amplifica o gesto de “dar a voz” ao outro.

A ausência do autor no ato da filmagem é outra condição que valoriza e intensifica a expressão do outro. Em “Rua de Mão Dupla”, Cao Guimarães joga algumas câmeras nas mãos de seis pessoas, convidadas a trocar de casa durante 24 horas e a compor um retrato imaginário do morador desconhecido. O resultado indica a permeabilidade entre as condições eu/outro, sujeito/objeto, identificação/diferenciação. Fica evidente que, mesmo quando o assunto é o outro, fala-se mais de si mesmo.

Kika Nicolela, em dois de seus trabalhos mais recentes, “Trópico de Capricórnio” e “Face a Face” também trabalha com o documentário-jogo. Ela dá as regras e sai de cena, para que o participante da experiência converse com a câmera como se olhasse para o espelho. (Tática maravilhosamente explorada em “Voracidade Máxima”, de Dias & Riedweg).

Realizados como obras individuais e exibidos neste ciclo na forma de uma videoinstalação, os vídeos “Trovoada” e “Carlos Nader”, de Carlos Nader, são emblemáticos da questão que parece estar por trás de todo impulso documental contemporâneo: a negociação entre identidades. Ao enfocar a qualidade íntima, pessoal e intransferível do tempo, “Trovoada” fala do eu. E, ao contrário da sugestão do título, “Carlos Nader” não é uma autobiografia, mas uma discussão sobre o “tornar-se outro”.

A alteridade, entendida como o encontro entre o eu e o outro, é o principal foco da poética da dupla Dias & Riedweg, representada neste ciclo por um documentário sobre a obra-acontecimento “Devotionalia”. A obra de Dias & Riedweg é inteiramente articulada sobre as estratégias de relação, representação e construção do outro. Mas o documentário “Devotionalia” não é a obra em si e por esse motivo está muito próximo da condição de certos registros de ação: o vídeo não pode ser a obra porque não abarca toda a complexidade da experiência gerada pelo acontecimento. Vem a pergunta: a discrepância entre o registro e a experiência é um problema? Talvez a maior diferença entre o registro e o documentário seja justamente a impossibilidade de o registro compartilhar da vocação transcendente do acontecimento. Ao aproximar o documento, a documentação e o documentário, o objetivo do ciclo é procurar identificar possíveis particularidades e correspondências entre os campos.

Paula Alzugaray
Agosto de 2006