A Invenção da Praia

A Invenção da Praia

Data
24 de abril a 22 de junho de 2014

Curadoria
Paula Alzugaray

Artistas
Alan Pauls, Allora y Calzadilla, Caio Reisewitz, Christiane Pooley, Francis Alÿs, Giselle Beiguelman, Hüseyin Bahri Alptekin, Janaina Tschäpe, Katia Maciel, Laura Erber, Lina Bo Bardi, Lucia Koch, Maria Laet, Rafael Assef, Regina Vater, Waléria Américo

Local
Paço das Artes | São Paulo

A INVENÇÃO DA PRAIA OU POEMA PARA CINCO CRIANÇAS E UM CÃO EM UMA PRANCHA DE STAND–UP

Ray Bradbury, o escritor que tentava afundar o Leviatã com a máquina de escrever, sugere que se leia poesia todos os dias da vida. Poesia é bom porque exercita músculos que não são utilizados sempre, escreveu ele certa vez. O mesmo acontece na praia. Não só glúteos, panturrilhas ou quadríceps são exercitados no doce caminhar sobre a areia. Como faz a poesia, a praia expande os sentidos e os mantém em forma.

Busca o alargamento da experiência sensível e estética o artista que mergulha na natureza transitiva da praia, experimentando ações efêmeras, ambientais. Também aquele que finca na areia seu observatório do mundo, a fim de enquadra-lo dentro de um horizonte particular, ou que abre uma janela na parede de um museu, maculando o cubo branco e deixando entrar o ar fresco do espaço externo [1]

Inspirada na obra literária A Invenção de Morel, escrita por Bioy Casares em 1940, e no ensaio A Vida Descalço, de Alan Pauls, esta exposição investiga o que acontece quando o artista recolhe a amplitude da natureza e da paisagem ao ar livre para o espaço interno do museu e da galeria, e que mecanismos ele cria para promover o grande salto. São divagações sobre a invenção da paisagem [2]

A exemplo do aparelho multimídia que o personagem-título do romance de Casares utiliza para reproduzir em seu museo todos os elementos sensíveis da realidade, esta se desenhou a princípio uma curadoria de projeções, de experimentos com ótica e som. A exposição está, afinal, composta de desenho, pintura, fotografia, projeto arquitetônico, instalação, vídeo, texto e performance. Mas mesmo que não apresente só obras feitas de luz, aparência ou fantasmas artificiais, esta é uma curadoria de projeções de ideias da praia.

“Não percebem o paralelismo entre os destinos dos homens e das imagens?” [3], indaga Morel em meio ao discurso explicativo de sua invenção que afinal se revelaria uma antecipação visionária de todas as teorias da imagem e do simulacro que surgiriam na segunda metade do século 20. Com as fantasmagorias de Bioy Casares se relacionam nesta exposição as obras em vídeo monocanal de Janaina Tschäpe, Maria Laet, Waléria Américo e Giselle Beiguelman. Todas concordaram com a ideia de pela primeira vez apresentarem seus trabalhos em retroprojeções sobre telas translúcidas, soltas no espaço, criando realidades em suspensão.

Quem nos abre os olhos para o paralelismo entre o mundo das imagens e da praia é outro escritor argentino, o contemporâneo Alan Pauls, que integra esta exposição como artista convidado. Suas dissertações sobre a condição hipervisível da praia são não só altamente sugestivas, mas definitivas para os caminhos deste trabalho. “Tudo está ali, desdobrado, explícito: o que se vê é o que existe. Estamos no império do visível; não há fundos falsos onde se esconder nem margem para segredos. Os enigmas não cabem na lógica da praia” [4].

Um dos mais fascinantes atrativos do texto de Pauls é sua maleabilidade, sua capacidade de moldar as ideias como castelos de areia que nem bem terminam de subir e são derrubados. Poucas páginas antes de argumentar que é impossível fugir ao olho solar e que nada pode se ocultar ou desaparecer quando envolto na luz brilhante da praia, ele associa-a a um “território livre de imagens”, tela em branco, que não chama a atenção tanto pelo que apresenta em sua superfície homogênea e neutra, “e sim por todas as imagens que é capaz de suscitar” [5]

A praia de Pauls funciona portanto como um princípio ativo da curadoria. Se relacionam à sua hipervisibilidade explícita ou a sua “castidade icônica” cada um dos 17 trabalhos expostos. A começar pelas obras fotográficas e aquelas que discutem a luz e a fotografia como meio, mesmo que realizadas em outras mídias.

Em sua brancura seminal, Piaçabuçu (2012), de Caio Reisewitz, se comporta como uma superfície projetiva, suscetível a receber inputs de subjetividade e imaginação. A imagem foi realizada na divisa entre os estados de Alagoas e Sergipe, no encontro do Rio São Francisco e do Oceano Atlântico. Nela se aproximam ainda as matérias diáfanas do céu e do mar, em negação ao que a linha do horizonte tem por missão demarcar. Na desocupação dessa grande área embranquecida, o observador pode se entregar a exercícios de figuração, abstração, fabulação.

A qualidade receptiva do espaço vazio é também afirmativa na instalação Externa-Dia-Praia (2012-2014), de Lucia Koch, montada. Composto por um set de fontes, rebatedores e filtros luz normalmente usados em estúdios fotográficos, esse espaço instalativo guarda uma certa aura de praia deserta, à espera dos visitantes que venham interagir com ele, ocupando-o, modificando-o. Suas telas e filtros de cor também funcionam como superfícies projetivas de imagens mentais e experiências sensoriais.

A produção de sentidos que o visitante do Paço das Artes por ventura venha a realizar a partir de sua experimentação, corresponderia às pegadas deixadas na areia de uma praia vazia. A natureza supostamente neutra da praia, ou do set antes que as imagens sejam produzidas, será certamente maculada pelo impulso de figuração e fabulação do visitante [6]

A praia a que nos referimos aqui é um terreno invadido. De marcas, restos, fragmentos de outros tempos. De histórias de marinheiros e de faroleiros. Ou de pegadas deixadas na areia. Como os discursos, ideologias e perspectivas políticas que se somam e se anulam nas fotografias da série Land Mark (Foot Prints) (2000-2002), de Allora y Calzadilla. O projeto foi realizado em praias da Ilha de Vieques, Porto Rico, com ativistas, ambientalistas, estudantes e diversos grupos envolvidos em protestos contra testes de bombas da Marinha americana na ilha.

Nas solas dos sapatos dos manifestantes, os artistas acoplaram uma série de textos, citações, desenhos e mensagens – que foram escolhidos por cada usuário. “As imagens feitas pelos sapatos nos lembram tanto as marcas arrogantes deixadas para sempre na Lua como resultado da corrida espacial da Guerra Fria quanto a pegada única na areia, que capturou o olhar colonialista de Robinson Crusoé”, apontam Allora y Calzadilla em statetement sobre o trabalho.

O testemunho fotográfico das pegadas que marcam a paisagem como selos sobre o terreno, instaurando uma diversidade de territórios, nos arremessa aos contos do Livro de Areia de Borges, aos versos de poemas riscados na areia pelo Padre Anchieta, e ao modelo de espaço cívico praiano de Pauls: “vida comum sem autoridade, autorregulação sem controle, prazer sem compromisso, anarquia sem agressividade. O que os teóricos da complexidade chamam de emergência; ou seja, essa misteriosa ordem geral gerada por um sistema com inúmeros participantes, no qual ninguém está no comando e cada um se adapta, segundo a segundo, a condições que são estritamente locais. Assim, a praia deixa de ser o paraíso erótico kitsch(…) e se transforma num experimento erótico-político.”

Experimento erótico-político

Obscena, verborrágica, prolixa, residual. É a praia sincrética que nos interessa: zona intermediária – de ideias, conceitos e afetos. Espaço democrático, como o Carnaval, sem cordas, correntes, grades e outros meios de segregação. Lugar do encontro, do jogo, da confraternização, da socialização. Mistura de pagode com blues, futebol e oração, limão e mate, abstração e figuração, silêncio e explosão. Jogo de equilíbrios tênues, capaz de juntar dezessete artistas, cinco crianças e um cão em uma prancha de stand-up.

Múltiplas praias se avizinham no espaço desta exposição. Elas se organizam em territórios compartilhados, assim como são construídas as casas da vila uruguaia de Cabo Polônio. Há a praia especular de Hüseyin Bahri Alptekin, que aproxima Ipanema e Bombay em dois vídeos irmãos. Há a praia negociada de Francis Alys, que mistura o Mar Negro com o Mar Vermelho, despejando uma balde de água de Trabzon, na Turquia, em Aqaba, na Jordânia, e vice versa, no vídeo Watercolor (2010). E há a loucura, a fricção, o “tudo junto e misturado” que eclode do contato físico das festas e multidões, captados por Giselle Beiguelman em Paisagem Interrompida/ Yemanjá (2014), vídeo realizado especialmente para a exposição.

Em toda sua qualidade hipercondutora, essa questão de pele está ainda nos Quadrados na Cor da Pele (2013), fotografias de tatuagens de Rafael Assef, cujo resultado é uma espécie de pantone de tons epidérmicos – obra que traz ao contexto da exposição o calor da massa de corpos nas praias urbanas do mês de janeiro. Algo parecido ao que Beuys chamou de “calor social”, para definir o uso de gordura que fazia no trabalho e nos espaços que habitava: “Não o calor físico como o calor do fogão” [7]

Calor que irradia da sociabilidade da obra de Regina Vater, que plantou na areia da praia da Joatinga (Rio de Janeiro,1970), um projeto de reconstrução social, mental e ecológica. Desde a ação Magi (o) cean, que transformava o lixo da praia em obra-rito-oferenda a Oxumaré e São Jorge, até o trabalho recente que denuncia a pesca predatória no Brasil, passando pelo engajamento em campanhas ecológicas, Vater tem a praia como lugar de restauração e reinvenção das relações humanas. Nesta exposição, a artista participa com Cinematic Still Ying Yang (1977), sequencia foto-cinemática que enfatiza uma conexão de corpos na praia de Ipanema: “Essa combinação árdua/doce/estimulante Ying Yang que tanto condimento e dinamismo empresta à vida”. Um contraste ao silêncio do texto-carta-performance de Laura Erber.

Alegoria desse “espaço escatológico por excelência”[8] , a exposição trabalha com sobreposições e justaposições, a fim de entender a praia como processo e princípio conceitual, em interface também com outros projetos artísticos, o Arte Praia e a Plataforma Atacama. A aproximação com o Arte Praia, promovido em Natal pela Casa da Ribeira, se dá por meio da obra de Lucia Koch, realizada originalmente para Natal e reativada para o Paço das Artes. Já a pintura de Christiane Pooley foi realizada para A Invenção da Praia em parceria com a Plataforma Atacama, projeto da curadora Alexia Tala que convida artistas para habitar diferentes regiões do deserto. A obra foi realizada a partir de uma residência na praia de Hornitos, no Chile, local onde o deserto do Atacama encontra o Oceano Pacífico.

Em seu conjunto de ações, textos e instalações, a exposição quer se oferecer como um lugar de encontro, reflexão e debate sobre a função da arte no exercício das práxis sociais e de reconciliação com a natureza. Lugar para perder a hora, operar com novos referenciais de tempo e espaço. Lugar não muito distante do “horizonless space” (espaço sem horizonte) que (des)orienta a visão de James Turrell, uma das referencias máximas desta curadoria.

“Estou interessado nessa nova paisagem sem horizonte”, anotou Turrell sobre sua série de instalações Ganzfield Pieces. “Mais ou menos como a paisagem que você pode encontrar ao voar dentro da nuvem ou com neblina. Você também pode encontra-la em ‘whiteout conditions’ (condição metereológica de baixa visibilidade), quando vai esquiar e presencia um deslizamento de neve. Ela pode acontecer quando não tem certeza sobre o que é o alto e o que é o baixo. Isso também ocorre em mergulho. Estamos entrando no território do espaço sem horizonte, que também pode ser experimentado no espaço sideral sem gravidade”[9].

Horizonless

Embora o horizonte seja um denominador comum a todas as praias do planeta, e uma das poucas certezas que se pode ter quando pisa-se na areia, ele será sempre tão inatingível e imponderável quanto a sua ausência. Seja afirmativa e cortante, ou irregular e confusa, a linha litorânea é, como continua Alan Pauls, “sinônimo de monstruosidade (é o limite que o homem não deve ultrapassar) e o oceano, demonizado pelas mitologias do Diluvio, torna-se instrumento de caos e destruição” [10].

É no terreno instável das tempestades e das certezas borradas que se instalam as obras de Maria Laet que, como uma Penélope contemporânea, se lança ao absurdo de tentar demarcar com linha e agulha os limites do encontro do mar e da terra. Ou de Katia Maciel, que na instalação Vertigo (2014) inverte o sentido do horizonte, escondendo todo um oceano na quina entre duas paredes. E de Janaina Tschäpe, que em Ballgame (2012) perturba a visão do horizonte, inscrevendo sobre a varredura das ondas a órbita bêbada e os movimentos irreverentes de duas esferas luminosas.

Waléria Américo constrói uma plataforma para prolongar sua visão do horizonte. Na ação Acima do Nível do Mar (2007), enquanto a tarde cai, a artista faz seu castelo de tijolos e erige uma estética das alturas. Ao construir estruturas para trepar, balançar, subir balaustradas, descer escadas e escalar trampolins, a artista avança “rumo a um lugar que não se conhece ainda”, aponta Moacir doa Anjos.

De um ponto de vista alto e instável, avistamos outra construção sobre a areia, que havia ficado soterrada pelo tempo. O Museu à Beira do Oceano, de Lina Bo Bardi, é um projeto de 1952, concebido para ser edificado sobre a areia da praia de São Vicente (São Paulo), e para abrigar exposições de arte brasileira e uma escola. Devido à proximidade com o mar e a suscetibilidade ao humor das marés, o edifício seria elevado do chão. Uma solução que não ocuparia por completo o terreno, permitindo a vista do mar desde a estrada do litoral, e exprimindo bem a preocupação de Lina Bo com a saúde das relações entre civilização e natureza.

O projeto foi encomendado pela prefeitura da cidade, quatro anos após a inauguração do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Segundo texto de Lina Bo Bardi publicado na revista Habitat [11] , o museu de São Vicente teria um corpo “mais leve, mais ágil, que lhe proporcionará mais segura liberdade de movimentos, ou melhor, não será propriamente uma verdadeira pinacoteca, no sentido tradicional (…) Apresentará exposições organizadas segundo um critério metódico e uma finalidade adequada às possibilidades mentais e culturais do local. Alternará exposições de arte pura, do passado e do presente, com exposições das assim chamadas “artes menores” e, sobretudo, de “artes industriais”[12].

Esse museu-escola que almejava ter pescadores entre os alunos e frequentadores nunca foi construído. Permaneceu no horizonte das perspectivas políticas utópicas. Hoje, com a liberdade de movimentos sonhada por Lina Bo, ajudados pela devida concessão poética de Bradbury e impulsionados pela engenhosa invenção maquínico-ficcional de Morel para deslocamentos temporais, imaginamos uma ocupação para esse museu litorâneo. Às exposições do passado e do presente que o Museu à Beira do Oceano tinha por proposta apresentar, viemos propor uma exposição vinda diretamente do futuro. Assim, com as 16 obras desta Invenção da Praia, transportamo-nos para a imensa sala expositiva inteiramente aberta para o Atlântico, protegida por noventa metros de uma única parede de cristal.

[1] O artista em questão é Waléria Américo, que interferiu na parede do MAC-CE com a obra Déjà-vu (2006), uma janela aberta para o lado de fora do museu. Com esse gesto, a artista altera a lógica do cubo branco, conceito que descreve o espaço ideal da galeria moderna: branco, limpo, lacrado, livre de interferências do mundo exterior e de qualquer experiência que não a estética.
[2] Usamos aqui o sentido atribuído à palavra paisagem por Paulo Herkenhoff e Marcelo Campos: a natureza é a parcela inalcançável do mundo, aquilo que nos faz mais instintivo, primevo. E a paisagem é, antes de tudo, invenção, recorte imaginável sobre uma imensa desordem. In: Coleção Edosn Queiroz
[3] Bioy Casares, Adolfo. A Invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pag. 86
[4] Pauls, Alan. A Vida Descalço. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg 27.
[5] Cf. a Vida Descalço, op. cit. , p. 9-13
[6] Externa-Dia-Praia foi originalmente concebida para o projeto Arte Praia, em Natal, Rio Grande do Norte, 2011. Alguns resultados dos impulsos de fabulação que a instalação incitou nos frequentadores da praia são mostrados em A Invenção da Praia, na forma de vídeos e fotos.
[7] Harlan, Volker. A Planta Como Arquétipo da Teoria da Plasticidade e a Floresta Como Arquétipo da Escultura Social. In: Joseph Beuys – A Revolução Somos Nós. São Paulo: SESC, Associação Cultural Videobrasil, 2010. p. 40
[8] Cf. a Vida Descalço, op. cit. , pg 26
[9] Turrel, James. James Turrell: A Retrospective. Los Angeles County Museum of Art, Delmonico Books, Prestel Munich, London, New York, 2013. pg 249
[10] Cf. a Vida Descalço, op. cit. , p. 37
[11] A Habitat – Revista das Artes no Brasil foi dirigida por Lina Bo Bardi até o número 15 (com exceção dos números de 10 a 13, dirigidos por Flávio Motta). Na revista, a arquiteta manteve uma coluna de crônicas sob o pseudônimo Alencastro.
[12] Bo Bardi, Lina. Balanços e Perspectivas Museográficas – Um Museu de Arte em São Vicente. São Paulo: Habitat nº 08, Julho-Setembro 1952, pgs 2 a 11.