DEVIR INDÍGENA
Data
17 de setembro a 20 de novembro de 2022
Curador
Paula Alzugaray e Marcio Doctors
Artistas
Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana
Local
Casa Museu Eva Klavin, Rio de Janeiro, Brasil
naapan: pensar palavras
Há um ano, na ocasião da mostra Moquém_Surarî, Denilson Baniwa dividiu comigo uma inquietação, a respeito da falta de documentação crítica sobre a abundante produção de povos indígenas se utilizando da visualidade como forma de aparecimento no mundo. O que se sabe sobre esses artistas e sobre uma aparição muito anterior, que começou nos anos 1980, quando indígenas usaram a performance para se colocar no debate da Constituinte? – perguntou. Alguns meses depois, reagi a essa provocação convidando-o a integrar uma mesa de debate, juntamente com a crítica de arte Lisette Lagnado e o historiador da arte Renato Menezes, para ritualizar o lançamento do livro seLecT Floresta e o encerramento de um ano de muita exposição da arte indígena[i]. Abrindo outro.
Talvez ‘“crítica’“ não seja uma palavra; talvez ‘“arte’“ não seja uma palavra; talvez ‘“contemporâneo’“ não seja uma palavra – disse Baniwa sobre a insuficiência, ou inadequação, das palavras que intitularam a mesa: Como fazer a crítica da arte indígena contemporânea. De fato, estas são noções ausentes do pensamento indígena. Arte, Crítica e o Contemporâneo não constam nos dicionários Português-Wapichana e Português-Baniwa consultados para a escritura deste texto[ii]. Concordamos. Existe uma lacuna de repertório. Como chegar a um entendimento mínimo sobre essa produção, a fim de poder documentá-la, é a pergunta que deve ser feita antes.
A alguns entendimentos mínimos pudemos chegar naquele primeiro encontro, em dezembro de 2021, que, nas palavras de Lisette Lagnado, marcou um grau zero dessa discussão. Para fazer a crítica da arte indígena seria necessário tentar criar esse repertório juntos, buscar os parceiros para fazer essa escrita, essa crítica ou qualquer outra palavra que pudesse nomear o que ainda não foi dito. Seria precipitado, então, dizer que a crítica da arte indígena é uma escrita coletiva?
Devir indígena é a continuidade imediata desse debate. Convidada pelo crítico Marcio Doctors a pensarmos juntos uma curadoria para a 25ª edição do Projeto Respiração, trouxemos para a Casa Museu Eva Klabin uma nova configuração dessa conversa, agora espacializada nas instalações e reflexões visuais de Gustavo Caboco e Denilson Baniwa, e nos pensamentos que Doctors e eu plasmamos em textos. Em nosso compromisso de documentar não apenas esta exposição, mas também o momento atual da arte indígena contemporânea, o desafio persiste: encontrar as palavras que possam traduzir esta produção.
Talvez uma palavra seja tokotokó-xeni
Este é o nome de certo tipo de lagarta listrada, que na passagem do tempo chuvoso para a época do calor e da estiagem aparece nos territórios dos povos Baniwa, no Alto e Médio Rio Negro. Na mitologia Baniwa, tokotokó-xeni é um dos seres que protegem as plantações. Essa atribuição tem razões naturais e simbólicas. No mito, Kowai é a entidade que ensina as comunidades a fazerem o roçado; a colocar o fogo onde a roça será plantada naquela temporada. E Kowai usa a lagarta nesse processo. Na natureza, quando se planta na época das chuvas, as raízes apodrecem e a árvore não vinga. Por isso, a visão de tokotokó-xeni é o anúncio de que chegou a época de plantio.
Talvez uma palavra seja partilha
A partilha de imagens oníricas deu início às pesquisas e ao processo de trabalho dos artistas. A aparição de um tokotokó-xeni em sonho de Denilson Baniwa foi contada para Gustavo Caboco, que lhe devolveu outro sonho que teve com uma lagoa e uma pedra cortada ao meio. Os sonhos, em muitas culturas indígenas, precisam ser socializados para servir como orientação de caminho, no raiar do dia. Há maneiras diversas de tornar um sonho público. O relato espontâneo talvez seja o mais comum e habitual, também entre os não indígenas. Mas compartilhar o sonho de forma ritualística, como fazer um discurso para a comunidade, é uma forma política de processar a vida onírica[iii]. O que me parece estar sendo experimentado nesta exposição.
Parentesco pode ser uma palavra
Há duas histórias sendo contadas nas salas da casa-museu. Elas são próprias do universo pessoal de cada artista, mas se entrelaçam como os fios que as lagartas tecem para se proteger e se transformar. Lembro-me da colocação de Baniwa no debate: “Para começar, é preciso entender que existem muitas artes indígenas contemporâneas”. De especificidades e complexidades são feitas as dimensões culturais dos povos. Mas também é preciso lembrar que a arte foi escolhida pelos indígenas como ferramenta de luta política. Nesse sentido, os caminhos assumidos são pessoais e ricos em diversidade, mas se cruzam e chegam ao mesmo lugar. Para Caboco e Baniwa, a arte é esse lugar de reciprocidade e parentesco.
Sabemos que as relações de parentesco, diferentemente do que ocorre na cultura ocidental, assumem conotações diversas entre os povos originários. Mas esse vínculo pode assumir uma dimensão subjetiva e afetiva mais ampla se articulado em torno do projeto estético-político de formação de uma grande comunidade. Podemos então pensar esta exposição como um relato tecido por laços entre parentes.
Tempo é palavra a superar
Num acervo de mais de 2 mil peças, que cobrem um arco de tempo de quase 50 séculos, Gustavo Caboco deteve-se justamente em um item que não estava catalogado. O fóssil de peixe estava na reserva técnica, mas escapava a qualquer categoria da história aqui contada. Esse objeto estranho foi trazido para dentro de seu projeto instalativo, juntamente com outros elementos de sua observação do espaço exterior à casa: a lagoa, sua sonoridade oculta, os bichos que restam em suas margens, a pedra do Cantagalo. O corte do Cantagalo rebateu no fóssil, objeto naturalmente partido em dois. Resgatado da condição leviana de souvenir, o peixe fossilizado vem redimensionar tempos que pensávamos antagônicos: o arqueológico e o imediato; o pré-histórico e o contemporâneo. Na rigidez translúcida das pedras-casulos de Gustavo Caboco, um choque de temporalidades.
Denilson Baniwa articula o tempo real ao tempo cósmico. Ele parte da mata do morro que está nos fundos do terreno da casa-museu e a leva para o interior da instalação por meio de uma projeção em tempo real. Da mata que se espalha pela parede inteira da Sala Inglesa escapa uma lagarta. Ela atravessa a casa e foge pelo teto do quarto de Eva Klabin, em uma pintura circular que representa uma das 24 constelações celestes que equivalem aos clãs da cultura Baniwa.
Medidas temporais, sejam elas progressivas ou não lineares, são noções desnecessárias nesse contexto. Entendemos o tempo como dimensão totalmente variável, quando pensamos na lógica das estações do ano amazônicas. Diferentemente do que ocorre na maior parte do país, a Região Amazônica não possui todas as estações do ano (outono, inverno, primavera, verão) bem definidas. Enquanto em toda a região abaixo da linha do Equador, no segundo semestre, existem duas estações oficiais – inverno e primavera – na Região Amazônica, apenas uma estação é considerada no período que vai de julho até o fim do ano, o verão amazônico.
O encadeamento das temporalidades da vida animal, vegetal ou interespécies – gestação, formação, maturação, nascimento, morte, renascimento… – deve ser reconsiderado nesta exposição. Talvez as noções de tempo que Baniwa e Caboco nos colocam em seus trabalhos devam ser substituídas pelas palavras partilha, convivência, parentesco, movimento, voo. Em que medida a passagem dessas ações pela casa permanecem? – pergunta Gustavo Caboco. Trata-se de não saber.
Talvez uma palavra seja naapan.
Passar a chuva, em idioma Wapichana.
Paula Alzugaray
setembro de 2022
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[i] Como fazer a crítica da arte indígena contemporânea. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JAlCXzLvGYE
[ii] Paradakary Urudnaa – Dicionário Wapichana-Português/ Português-Wapichana. Organização Bazilio da Silva, Nilzimara de Souza Silva e Odamir de Oliveira. Boa Vista: Editora da Universidade Federal de Roraima, 2013. E Dicionário da Língua Baniwa. Organização Henri Ramirez. Manaus: Universidade do Amazonas, 2001.
[iii] O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami. De Hanna Limulja. São Paulo: Ubu, 2022. P 72-82.