A Invenção da Praia: Cassino
Data
9 a 16 de setembro de 2017
Curadoria
Paula Alzugaray
Artistas
Caio Reisewitz, Chiara Banfi, Giselle Beiguelman, Katia Maciel, Laercio Redondo, Laura Lima, Lula Buarque de Hollanda, Maria Laet, Mauricio Adinolfi, Nino Cais, Sonia Guggisberg, Bruno Faria
Local
Istituto Europeo di Design | Rio de Janeiro
Museu à beira do oceano
Para Katuschak e Domingo, minha avó dançarina e meu pai artista de cinema
Em reportagem de capa do Diário Carioca, em 8 de agosto de 1936, um político conhecido como “senador dos cassinos” é cobrado por uma explicação, atitude ou gesto que esclarecesse os escândalos envolvendo a Prefeitura do Rio de Janeiro. “Vamos, Senador, Vida às Claras, ao Menos Uma Vez…”, exclama a chamada. Contrariando as expectativas, diz o texto, o homem permaneceu em silêncio, recolheu-se à sombra e à omissão, “quando seu dever de representante da Nação era destruir as acusações ou renunciar o mandato”.
O senador dos cassinos é mais um folião da corrupção infiltrada nos grandes bailes de máscaras da política nacional. A história dos laços entre um senador frequentador da Urca, os dirigentes de um estaleiro e o responsável por um órgão público da cidade, nos anos 1930, repete-se na esbórnia generalizada hoje entre políticos, empresários e funcionários públicos. Nada mudou. Silêncio e omissão são as leis da política brasileira.
Talvez por isso as ruínas do Cassino da Urca sejam tão ameaçadoras. Elas revelam um flagrante entrelaçamento entre passado e presente, entre luz e sombra. Os escombros do que um dia foi a estrela soberana na noite carioca, a casa noturna mais frequentada da América Latina, encobrem não apenas casos notórios, mas fatos incógnitos que nunca chegaram a ser desmascarados. Através das frestas nas paredes adivinham-se os risos e os rumores que selaram tramas, conspirações, sabotagens, crimes cinematográficos, como o noticiado assalto de joias, arquitetado pelo chefe da Seção de Roubos e Furtos da Diretoria Geral de Investigações (DGI) do Rio, com o envolvimento estratégico do porteiro do cassino [1]
Sobre as brancas areias da Urca, nesse palácio de vícios e prazeres, reunia-se a fina flor da boemia artística carioca. A inauguração do Cassino da Urca, em 1933, coincide com o nascimento da era de ouro da música popular brasileira – 1932 foi o Carnaval de Noel Rosa – e com os tempos sombrios de ditadura e de guerra. Tempos de vigilância e paranoia, quando os artistas da noite eram fichados pela Delegacia de Ordem Política e Social (Dops) do Estado Novo.
Então lugar de insubmissão, o cassino é hoje um museu do esquecimento. Longe de suas feições originais – descaracterizadas em décadas de ressignificações e abandono –, sem que se possa recorrer a fichários, álbuns ou arquivos que documentem e elucidem seus dias de gloria e ruína, o cassino ganha discernimento no projeto A Invenção da Praia. Na forma de espectros e reinvenções, os trabalhos realizados por 12 artistas convidados reelaboram sua arqueologia e sua memória.
A invenção da identidade
Em sua presença invisível e inquietante, os ratos, evocados a participar do trabalho de Laura Lima, se relacionam tanto com a corrupção tramada nos salões do cassino, quanto com as narrativas e os corpos de todos aqueles profissionais que foram mergulhados na clandestinidade em 1946, após repentina proibição dos jogos de azar e o fechamento do Cassino da Urca.
Em 1940, quando se contavam oficialmente 79 cassinos no Brasil, os conúbios ilícitos eram tais que o governo Vargas, tido como “sócio” das casas de tavolagem, teria estabelecido uma lei que dispunha que, se um dia o jogo fosse proibido, o Estado pagaria indenização aos proprietários e as dívidas trabalhistas com os funcionários demitidos [2] . Paradoxalmente, a sociedade vivia marcada por uma política de punição corporal de pensamento higienista, articulada por uma rede de investigação a pretexto de defesa da ameaça comunista.
Esse “regime de corpos”, segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, considerava o artista da noite suspeito até prova em contrário. “Por ser um corpo fora do normal, por ter habilidades que não são comuns a um corpo que, naquele momento, no Brasil, era pensado como um corpo masculino, rígido, militarizado, corpo higienizado e moralizado” [3].
A guerra na Europa reforçava fronteiras dentro do território brasileiro. Nomadismo, para o Estado, era antagônico ao controle. Era preciso um documento de salvo-conduto para passar de um estado a outro. Artistas de cassinos, que transitavam por toda a costa sul-americana, do Recife a Buenos Aires, eram alvo número 1. Para circular livremente, fazia-se necessário falsificar, disfarçar, fantasiar.
Assim nasceram as personalidades exóticas, exuberantes e fantasiosas dos artistas da noite. Como a princesa bailarina Alda Bogoslowa, supostamente nascida na Rússia entre 1891 e 1892. Segundo notícia do Diário de Pernambuco (1929), ela teria pertencido ao elenco do Theatro Imperial Russo, passado por Áustria, Alemanha e Holanda com grande reconhecimento, e pelo cabaré Folies Bergère, em Paris, antes de chegar ao Recife para dançar no Imperial Cassino . Ou como Magdalena de Mejia, conhecida na vida artística como Lidia Campos, nascida em Rosário, na Argentina. Cantora em cabarés, dancings e cassinos, na Argentina travestia-se de Mariak de Mendonça, a Soberana da Canção Brasileira; e, no Brasil, era anunciada como La Reina del Tango [5].
Rato (2017), de Laura Lima, evoca essas identidades perdidas. Assim como a videoinstalação Travessia (2017), de Sonia Guggisberg, que, ao abordar as migrações contemporâneas, trabalha com vidas em estado de suspensão. Com cenas e sons captados no Mar Mediterrâneo e em campos de refugiados em Malta, Lampeduza e Grécia, Travessia integra uma pesquisa a respeito do redesenho de identidades, empreendido por migrantes que deixam a terra natal e se lançam ao mar, sem certezas nem destino.
A morte na praia é a imagem que a todos devora. Os fragmentos de naufrágios – de barcos e vidas – trazem a angústia dos projetos que acabam na areia. Especialmente hoje, com a tragédia cotidiana dos refugiados sírios. E com a derrocada da cultura como pilar da sociedade.
Camarim das atrizes
Em 1925, o espanhol Juan Gris pinta La Guitarre Devant de La Mer, natureza-morta com violão diante de uma janela aberta para o mar. O elemento mais comentado da paisagem é o triângulo branco que viria a representar um veleiro. Mas não chama menos atenção a semelhança dos morros ao fundo com o Pão de Açúcar [6].
A paisagem cubista de Gris poderia ter sido pintada desde a escotilha de um barco ancorado em uma manhã no Rio, no momento em que “o furo do ambiente calmo da cabine cosmoramava pedaços de distância no litoral” [7].
Quando o Pão de Açúcar era um teorema geométrico, para Oswald de Andrade e para os modernistas brasileiros, a dançarina espanhola impunha desafio semelhante aos pintores cubistas franceses e espanhóis. Pentes, leques, cordas de guitarra e sinuosidade das ciganas andaluzas eram mais sugestivos e propensos à abstração geométrica do que os recursos das dançarinas francesas de cancã.
Nos anos 1930, uma dançarina espanhola de nome russo iluminou as noites do Cassino da Urca. Mas pouco restou sobre ela. Apagadas, as vedetes que jazem à sombra da centelha luminosa de Yolanda Penteado, Elvira Pagã, Eros Volúsia, Virginia Lane, Íris Bruzzi e Luz del Fuego (estas, sim, evocadas em biografias, documentários e exposições), impõem um desafio para quem delas tenta se aproximar. Se hoje elas são tênues rastros, em seu tempo foram impositivas.
“Buscando a individualidade, aquelas vedetes atuaram na desconstrução da vida puritana, questionaram a ordem patriarcal da sociedade e advogaram a emancipação da mulher. Sua audácia resultou numa biopolítica da corrosão do poder”, afirma Paulo Herkenhoff [8]. Assim como as artistas modernas (Tarsila, Anita, Maria), Mariak, Magdalena e Katuschak quebraram paradigmas e foram determinantes para a mudança do papel da mulher na sociedade brasileira.
É sobre essa presença afirmativa que se debruça Laercio Redondo. Em Como “Vaes” Você/ Espectro de Carmen Miranda (2017), elaborado para a Invenção da Praia, Redondo retorna à personagem que centralizou sua pesquisa em 2010 (Carmen Miranda – Uma Ópera da Imagem). Ao pinçar um trecho enigmático da marcha de Ary Barroso, imortalizada por Carmen, o artista macula a superfície caricata do mito. Ao destacar a frase – claro é o passado, escuro é o futuro – vai em busca da dimensão do corpo performático e político da cantora, seu senso de humor e uso deslumbrante de influências da cultura afro-brasileira. No Grill Room da Urca foi inventado o Brasil exótico.
Do fosso de orquestra onde se apresentaram as mais animadas big bands que o Rio de Janeiro conheceu emanam as vozes de 26 poetas mulheres. Elas integram o projeto de performance expandida Alto-mar (2017), de Katia Maciel, composto de leituras de poemas que contêm a palavra MAR. Ao tornar o antigo palco do cassino ponto de encontro de poetas ao longo de sete dias corridos, Alto-mar alcança as alturas dos timbres sonoros de outros carnavais. O projeto aproxima a poesia – aqui expandida em leituras coletivas e em ações públicas e políticas – ao campo da performance; e amplifica a voz feminina na poesia contemporânea.
Nas tertúlias de Alto-mar, há amplo diálogo com os saraus modernistas. Chega-se a avistar, ao longe, os eventos notáveis do ano em que o edifício foi inaugurado, 1922, como Hotel Balneário. Mesmo ano da publicação de Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, e da Semana de Arte Moderna. Ano da aprovação do plano geral do bairro da Urca, atendendo à nova demanda imobiliária de terrenos à beira-mar.
As instâncias do dia e da noite, do moderno e do contemporâneo, encontram-se na imagem da “a moça de salto que mergulha no mar”, no poema Casa Moderna, de Katia Maciel.
A Invenção da Praia
Em 1915, a Lapa ainda tinha PRAIA. Chamava-se Praia das Areias de Espanha. Hoje em seu lugar está a Praça Paris. Alguns séculos antes de a praia tornar-se o mais promissor projeto de espaço democrático da vida carioca, a Urca não passava de terreno pantanoso. Antigos mapas apontam que essas terras onde o Rio de Janeiro foi fundado em 1565, eram uma ilha. Um aterro no século 17 ligou a ilha ao continente. Outro aterro, em 1922, inventou a Praia da Urca.
Na Urca não cabem os arrastões, fenômeno analisado em videoinstalação de Lula Buarque de Hollanda. Os quatro canais de Arrastão (2017) discorrem sobre três tempos de existência dessa prática coletiva milenar, unindo duas margens do Atlântico. A narrativa inicia no Benin, onde os arrastões são consagrados à retirada da rede de pesca do mar, se arrastam para a zona sul carioca em domingo de sol, anos 1990, quando tomam a forma de atos libertários de ocupação do espaço público, e termina em 2017, como tática de guerrilha, estratégia organizada de roubo em tempos de crise econômica.
Arrastão é força da natureza social. Mesmo com toda barreira e esforço de civilizar a Praia de Ipanema e a Praia da Urca, as mitologias do Dilúvio preponderam.
A estas forças se impõem o Quebra-mar (2017), a segunda obra concebida por Katia Maciel especialmente para o projeto. É sugestivo como a imagem de uma onda que atinge repetidamente a parede marmórea do cassino na videoinstalação em três telas de Maciel reflete na forma como uns trabalhos da exposição respingam, ou rebatem em outros.
Como uma projeção do Quebra-mar, ela imagina: “Teve aquela vez em que o mar invadiu o salão e o espetáculo continuou”. O episódio vira matéria prima para as Memórias de Areia (2017), de Giselle Beiguelman, que coleciona histórias reais ou inventadas sobre o cassino, materializadas em objetos. Depois, transforma estas memórias em forminhas de areia para um happening coletivo na praia.
Memórias de Areia presume a ruína e a praia como páginas em branco. Como foi a areia de Iperoig (atual Ubatuba-SP) para o padre José de Anchieta, que entre os índios tamoios, escreveu um poema de 5.785 versos, varrido pelo mar e depois transposto da memória para o papel.
De presenças varridas pelo mar fala o tríptico fotográfico Sem Título (Ausência) (2011), de Maria Laet, que documenta as etapas de desaparição das marcas de um corpo na areia da praia. De perda das tradições do mar fala Maurício Adinolfi, que traz a este projeto sua atuação compartilhada com populações litorâneas em situação crítica e sua pesquisa sobre as relações do homem com o rio e o mar. Realizado com cordas marítimas e ossos de uma baleia jubarte, Leviathan 1.0 (2017) parte de uma investigação sobre a pesca de baleia no litoral fluminense, os barqueiros da região, seus resquícios e as relações com a cidade.
Tudo o que na ruína é sombra, é hipervisibilidade na praia. Lembremos que os enigmas não cabem na lógica da praia, onde tudo está explícito. “Estamos no império do visível; não há fundos falsos onde se esconder nem margem para segredos” [9], afirma o escritor Alan Pauls, integrante da primeira edição do projeto A Invenção da Praia (Paço das Artes, SP, 2014).
Do paradoxo entre hipervisibilidade e desaparecimento fala a série inédita Praia do Cassino (2017), de Caio Reisewitz. No Rio Grande do Sul, na maior e mais deserta praia do mundo, em seus 254 quilômetros de linha reta, ondas altas e ventos fortes, se prestam as condições ideais para as visões de imagens metais, as fabulações de habitantes noturnos de um cassino que não se sabe ao certo se chegou a inaugurar. Uma ruína a mais, na sequência de embarcações encalhadas na Praia do Cassino – 287 contabilizadas –, a imensa construção de pedra não alcançaria ser a grande atração turística do mais antigo bairro balneário do Brasil (1890). Naufragou antes de acontecer.
Retrato fiel da ruína brasileira, o cassino fantasma do RS evoca a lembrança de uma utopia modernista que nunca virou realidade. O Museu à Beira do Oceano (1951), de Lina Bo Bardi, encomendado pela Prefeitura de São Vicente-SP para ser edificado sobre as areias da praia, e nunca realizado. É para a memória desse edifício – e sua espetacular fachada de 90 metros de cristal voltada para o oceano Atlântico – convidamos a tocar a Ópera do Vento (2017) de Nino Cais, uma orquestra de 80 conchas marítimas, em papel. Ou o baixo escultórico da série Desenho Sonoro (2015), de Chiara Banfi, a ser dedilhado por longas unhas vermelhas espectrais – ou, ainda, pelas mãos do público. E Carmen Miranda, anunciada em cartazes distribuídos pela cidade, em sessões diariamente programadas, AO VIVO (2017), intervenção sonora de Bruno Faria.
É para a ruína do futuro que dedicamos os ratos, os navios fantasmas, as moças de salto e os arrastões. Para, quem sabe, encontrar entre os espectros, como diria Vila-Matas, uma verdade não demonstrável.
Paula Alzugaray
Setembro de 2017
[1] Policiais acusados de receber dinheiro de ladrões! Rio de Janeiro: Diário de Notícias, 9 de janeiro de 1935
[2] Castro, Ruy. A Noite do Meu Bem. São Paulo: Companhia das Letras. P. 22
[3] Hoffmann, Clarice e Muniz de Albuquerque Júnior, Durval. O Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos 1935-1958. http://obscurofichario.com.br/
[4] Com a pesquisa da jornalista pernambucana Clarice Hoffmann, foram digitalizados e disponibilizados no Obscuro Fichário dos Artistas Mundanos 429 fichas e prontuários pertencentes ao SSP-Dops/PE, de mulheres e homens, brasileiros e estrangeiros, que protagonizaram uma movimentação ocorrida na cidade do Recife no campo das artes e das diversões (entre dançarinas, sapateadores, cantores, transformistas, pugilistas, telepatas, cartomantes e ilusionistas), entre as décadas de 1930 e 1950. Esse fichário não apenas constitui um precioso memorial de personagens, como também uma saborosa cartografia de teatros, cassinos, bares, rádios e cinemas operante no Recife de meados do século 20.
http://obscurofichario.com.br/fichario/alda-bogoslowa/
[5] http://obscurofichario.com.br/fichario/magdalena-giamarelli-de-mejia-3/
[6] The Spanish Night – Flamenco, Avant-Garde and Popular Culture 1865-1936, Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2008, pg 235.
[7] Andrade, Oswald. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. P. 85
[8] Herkenhoff, Paulo. Tarsila e Mulheres Modernas no Rio. Rio de Janeiro: Museu de Arte do Rio, 2015
[9] Pauls, Alan. A Vida Descalço. São Paulo. Cosac Naify, 2013. P. 27
Bruno Faria
AO VIVO, 2017
Intervenção sonora e urbana
Diariamente, de 9 a 16 de setembro de 2017, Carmen Miranda se apresentou com o Bando da Lua no Cassino da Urca, cantando “O que é que a baiana tem?”. Assim anunciavam os cartazes lambe-lambe espalhados pela cidade do Rio de Janeiro. Convidado para show AO VIVO, o público se deparou com a intervenção sonora de Bruno Faria para A Invenção da Praia, ouvindo nas ruínas do Grill Room o áudio de uma hora de um concerto que a “Pequena Notável” realizou ali mesmo naquele palco em algum momento dos anos 1930, quando foi descoberta e catapultada para o estrelato.
Caio Reisewitz
Cassino I EC, 2017
Cassino II EC, 2017
Cassino III EC, 2017
Cassino IV EC, 2017
Cassino V EC, 2017
Urca EC, 2013
AIJP em papel Murakumo-Kozo
As imagens da série Cassino, de Caio Reisewitz, dissertam sobre o espaço. Abdicando do caráter referente da fotografia, não se resumem a simulacros de uma paisagem ou representações de outro lugar. Afirmam-se como objetos do próprio discurso que acontece no lugar e no momento em que estão sendo exibidas, time e site-specific.
Dispostas em cinco paredes da primeira galeria do antigo Cassino, as ampliações em pequena dimensão Cassino I, II, III, IV e V não desafiam a escala do salão. Instaladas em intervalos irregulares, as cinco fotografias se comportam como páginas em branco que emanam a natureza luminosa de outro lugar, a Praia do Cassino, no Rio Grande do Sul. A última praia do Sul do Brasil é feita de branco sobre branco. Areia sobre espuma, sobre céu nublado, sobre maresia que escapa das ondas. Naquela natureza não há linhas que desenham galhos, folhas ou carcaças de barcos naufragados. Nem esboços das ruínas de um cassino que não chegou a ser construído.
Não há, nas imagens da série Cassino, contornos designando formas de nenhum caráter. Nada existe ali, a priori, a fixar o olho; nenhuma solidez a impedir a distração do pensamento. Apenas existências líquidas e gasosas, que liberam o caminho à imaginação. Sob o olhar do fotógrafo, a superfície branca se impregna de invenção, assim como a natureza se crispa ou adensa, à aproximação da frente fria. A paisagem é então varrida de rosa, rebatida de azul, pincelada de sombras e coberta por uma fina camada de enunciados que não chegam a impor um discurso, mas guardam a qualidade de devir.
Urca EC (2013) atua como um ponto de fuga da instalação fotográfica de Reisewitz. Captura o olhar do visitante desde o fundo da segunda galeria, situada na extremidade do edifício. Instalada ao lado de uma escada misteriosa, sugere uma subida para a pedra parcialmente representada na fotografia. Ao sugerir a saída para o exterior, relaciona-se com o bairro e com a pedra da Urca, adivinhada através de um buraco em outra das paredes da segunda galeria.
Chiara Banfi
Baixo da série Desenho Sonoro, 2015
Madeira, tarraxas, arame, captador e amplificador
Minerais, cristais, instrumentos e partituras musicais se entrelaçam na pesquisa de Chiara Banfi sobre a corporeidade do som. Suas obras recentes trabalham com a ideia de que as pedras têm a capacidade de transmitir vibrações. A série Desenho Sonoro, iniciada em 2011, pertence a essa família de trabalhos que buscam revelar visualmente frequências imperceptíveis ao ouvido humano. Em sua intervenção no foyer do antigo cassino, a artista acopla à parede cordas de um baixo elétrico que podem tocadas pelos visitantes. Da interação do instrumento com os tijolos invadidos por raízes emana uma sonoridade espacial e visceral, libertando o edifício dos 40 anos de silêncio em que esteve imerso.
Giselle Beiguelman
Memórias de Areia, 2017
Fabricação digital, performance colaborativa com moradores da Urca e documentação
O que é a memória senão uma invenção? Movido por essa premissa, o projeto de Giselle Beiguelman buscou reunir lembranças do bairro, da praia e do cassino da Urca, a partir de relatos de seus moradores e dos participantes da exposição A Invenção da Praia. Os depoimentos captados em vídeo ou outros meios digitais previamente à exposição deram origem a um único texto, formando uma memória compartilhada. Extratos desse texto coletivo foram impressos digitalmente (impressão 3D), como carimbos. Um dia antes da abertura da exposição, sexta-feira de feriadão, os frequentadores da praia da Urca foram convidados a imprimir as memórias sobre as areias. A documentação, realizada em fotografias e videodrone por Lula Buarque de Hollanda, integrou a exposição, despertando novas lembranças no público visitante. Uma história sem fim.
Katia Maciel
Quebra-mar, 2017
Videoinstalação
Embalada pela visão fantasmagórica de uma noite em que o mar teria invadido os salões do Cassino da Urca, levantando cadeiras, mesas, copos, Katia Maciel concebeu esta videoinstalação especialmente para a exposição A Invenção da Praia. Quebra-mar é composta por três telas encaixadas em vãos das paredes de uma das últimas salas que guardam o mármore original da construção do Hotel Balneário (1922). As telas mostram a imagem de uma mesma onda marítima, explodindo de modo repetitivo e insistente, em três tempos ligeiramente diversos, contra as estruturas de sustentação do edifício. O mármore reminiscente é convertido aqui em quebra-mar, prolongando e perpetuando a persistência da pedra ao instante de fúria das águas. A visão produzida é a do edifício como peça de resistência.
Katia Maciel
Alto-mar, 2017
Performance
Ao longo de sete dias, sempre às sete horas noite, o fosso da orquestra do cassino foi tomado por leituras de textos poéticos. Das entranhas do palco do teatro, emanaram as vozes de 26 poetas mulheres convidadas por Katia Maciel para uma performance coletiva e expandida no efêmero tempo de duração da exposição. A palavra MAR foi ponto de inflexão e de encontro entre os 47 poemas colhidos pela artista em territórios diversos da poesia contemporânea brasileira. As paisagens selvagens, as águas, espumas, as âncoras e canções espraiaram e amplificaram a temporalidade da exposição. Reunida em um livro publicado pela editora 7 Letras, a antologia poético-performática é porta-voz da potência do encontro; caixa de ressonância que mantém vibrando as vozes do alto-mar.
Laercio Redondo
Como vaes você – Espectro de Carmen Miranda, 2017
Objeto e silk screen sobre papel
Em sua pesquisa artística, Laercio Redondo propõe a reconstrução da memória de episódios desaparecidos do imaginário brasileiro e de personagens marcantes, em grande parte mulheres, que passaram por longos períodos de apagamento. Aqui, no museu do esquecimento que se tornou o Cassino da Urca, Redondo volta a evocar Carmen Miranda, investigada anteriormente em Uma Ópera da Imagem (2010). Do mesmo modo que trabalha com a arquitetura modernista, Redondo aqui desmembra um mito que serviu à política internacional de Getúlio Vargas e devolve à Carmen o protagonismo da história. Se Carmen Miranda inventou o Brasil exótico com seu turbante e balangandãs, afirmando uma identidade afro-brasileira, é nas entrelinhas da história que Redondo vai buscar o seu discurso político, crítico e visionário. Afinal, a frase ‘claro é o passado, escuro é o futuro’, da música “Como vaes você?”, contém o espectro de um futuro que já se anunciava em ruínas.
Um lapso de tempo separa a passagem do visitante pela obra dissimulada em um nicho sobre as escadas que levam ao mezanino e à percepção de sua presença. Sua visão se dá então na forma de aparição, num contexto difuso entre luz, sombras e vagas lembranças.
Laura Lima
Rato, 2017
Parede de queijo
Segredo, clandestinidade, consumo, corrupção e degeneração são os fatores articulados na intervenção de Laura Lima. Concebida para ser ativada por colaboradores noturnos, quando as luzes da exposição se apagam, a obra quase imperceptível aos visitantes é composta por duas paredes parcialmente cobertas por uma massa comestível para atrair ratos. Os atuais habitantes do cassino são assim convocados a interagir com a artista visitante, em conúbios quase tão ilícitos quanto aqueles praticados quando o cassino funcionava como hospedeiro das máfias do jogo político. Vigiados por câmeras noturnas e raios infravermelhos, ou adivinhados em aparições efêmeras à luz da exposição, os ratos dividem com a artista o discurso do trabalho.
Lula Buarque de Hollanda
Arrastão, 2017
Videoinstalação
(Fotografia: Cesar Charlone e Toca Seabra/ Som: Valéria Ferro/ Edição de imagem: Gabriel Picanço/ Edição de som: Vinicius Leal/ Produção: Espiral)
O arrastão é um levante, no sentido proposto por Georges Didi-Huberman: não se faz um levante sem certa força, invariavelmente coletiva, provocada pelo impulso de desejo e de liberdade. A reinvenção do arrastão – da prática ancestral de pescadores para a retirada da rede do mar até os fenômenos que varrem a orla carioca no calor do alto verão – é investigada na videoinstalação de Lula Buarque de Hollanda. A justaposição de imagens de ambas as ações orquestradas a serviço de diferentes pulsões de desejo (por peixes ou por celulares) é colocada pelo artista a serviço de um manifesto em defesa de um novo ciclo de reinvenção do arrastão: agora como pulsão de desejo por valores como solidariedade, educação, honestidade ou amor.
Maria Laet
Leito (-22.9617723, -43.2176653-03), 2013
Vídeo
Este vídeo, que registra o curso de um líquido leitoso ao longo de uma fissura na pavimentação urbana, ganha uma nova dimensão ao ser projetado sobre as paredes do antigo cassino. Ao se colocar como uma camada de informação sobre a superfície rugosa da parede, a imagem ganha um sentido diverso daquele que teria ao ocupar a neutralidade de um espaço expositivo convencional. Aqui, o fio de leite escorre entre as raízes e as infiltrações de água que invadem a ruína. Assim, Maria Laet nos lembra que sua imagem projetada e nós, artistas e participantes do projeto A Invenção da Praia, somos todos invasores deste contexto, onde deixaremos alguma marca.
Maria Laet
Sem Título (Ausência), 2011
Impressão a jato de tinta sobre papel algodão
Se em Notas Sobre o Limite do Mar, vídeo exibido na primeira edição de A Invenção da Praia (Paço das Artes, SP, 2014), o intuito era demostrar a impotência do desejo de manter intacto o limite entre oceano e continente, em Sem Título (Ausência) a artista se entrega ao imponderável. A permanência já não é possível neste tríptico fotográfico, que documenta as marcas de um corpo na areia em irreversível desaparecimento, à medida que são varridas pelas ondas do mar. No contexto desta exposição e à luz do projeto curatorial, o trabalho poderia se referir à invisibilidade dos corpos e das identidades vagas que um dia marcaram presença na vida do cassino.
Maurício Adinolfi
Leviathan 1.0 (da série Urubukeçaba), 2017
Cabos de aço, cabos marítimos, ossos de baleia jubarte, concreto, gesso, inox, ferro e espelhos
As matérias tramadas por Maurício Adinolfi em Leviathan 1.0 carregam a memória das ações praticadas anteriormente pelo artista com populações litorâneas em situações críticas. As cordas de embarcações, recolhidas nas praias do litoral que separam o Rio de Janeiro e Santos (cidade natal de Adinolfi), e os ossos de um filhote de baleia jubarte, resgatados de um acidente ecológico, imprimem à instalação um caráter trágico. Em sua prática, o artista está atento às crises ambientais, sociais e culturais, e isso se reflete no trabalho que ocupa dois andares do edifício, atravessando o piso por um buraco. Além disso, o embate do homem do litoral com os mares e as águas enfurecidas por desajustes ambientais, parece repetir-se no embate que o artista travou com a matéria de seu trabalho, ao longo de cinco dias de montagem. O resultado aproxima-se de uma escultura ambiental.
Nino Cais
Ópera do Vento, 2017
Instalação
Se para Nino Cais o corpo é a matriz de tudo o que existe, em Ópera do Vento este corpo é um órgão coletivo. Composta por 85 suportes de partituras musicais contendo páginas de um livro antigo com fotografias de conchas, esta orquestra imaginária foi montada em semicírculo, acompanhando a sinuosidade da arquitetura do mezanino do antigo teatro e ecoando a estrutura em caracol dos objetos fotografados. Elaborada a partir da apropriação de imagens de um livro esquecido, a Ópera do Vento equaliza o silêncio e a iminência do som em uma sutil vibração. Em simbiose com a música do passado e sujeita às correntes de ventos e intempéries que hoje atravessam as ruínas do edifício, a obra amplifica o poder da imagem e vem despertar memórias do cassino que um dia foi hotel-balneário.
Sonia Guggisberg
Travessia, 2017
Videoinstalação
A escotilha de um barco, filmada pela artista durante travessia no mar Mediterrâneo, é projetada no fundo de um nicho escuro do antigo cassino. A oscilação da imagem na parede reproduz o balanço do mar. O som do motor do barco é atravessado pela música escutada por refugiados árabes e africanos, em seu caminho às cercas da Europa. A memória migrante, cantada na videoinstalação de Sonia Guggisberg, vem evocar os fantasmas dos estrangeiros que ali trabalharam: as dançarinas, as coristas, os músicos e os contorcionistas de identidades falsas e sem endereço fixo, que foram os passageiros permanentes daqueles brilhantes salões.
Paula Alzugaray
A mulher que perdeu a sombra – Uma biografia emocional da dançarina hespanhola do cassino, 2017
Texto
Esta biografia fictícia de uma dançarina do Cassino da Urca foi realizada com base nas fichas da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), produzidas entre os anos de 1953 e 1958, com registros da passagem pelos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco de indivíduos considerados uma ameaça pelo fato de serem artistas e trabalharem à noite. Porém, em oposição à narrativa policialesca e moralista das fichas originais, este texto é uma concessão poética e uma homenagem à liberdade.