Videometria: o vídeo como ferramenta de medição na arte contemporânea brasileira

Videometria: o vídeo como ferramenta de medição na arte contemporânea brasileira

Data
10 de de maio a 26 de junho de 2006

Curadoria
Paula Alzugaray

Artistas
Lucas Bambozzi, Lenora de Barros, Laura Belém, Marcio Botner, Marcelo do Campo, Lia Chaia, Marilá Dardot, Maurício Dias e Walter Riedweg, Paula Gabriela, Homemade Films, Raquel Kogan & Lea van Steen, Leandro Lima & Gisela Motta, Dora Longo Bahia & Ann Marie Peña, Cinthia Marcelle, Marepe, Alice Miceli, Beth Moysés, Kika Nicolela, Sara Ramo, Camila Sposati, Janaina Tschãpe.

Local
Galeria dels Angels | Barcelona, Espanha

Eat me é um filme feito em dois planos: uma boca masculina que suga um objeto redondo e uma boca feminina que chupa uma salsicha de cachorro-quente. A montagem dos dois planos segue uma progressão matemática. No início, destina 2 metros de película cinematográfica para cada plano, depois 1 metro para cada um, em seguida meio metro, assim até chegar à fusão entre os planos. A experiência métrico-cinematográfica da artista carioca Lygia Pape (1927-2004), feita em 1979, quase uma década antes de o vídeo se tornar uma ferramenta possível entre os artistas brasileiros, antecipa muito do que se faz hoje em videoarte. Eat me não está em exibição neste programa que se propõe a apresentar um recorte da produção recente de vídeos de artistas brasileiros. Mas suas operações de corte atingem os efeitos de redundância e continuidade que sintetizam, por exemplo, a atual prática do looping em vídeo.

Experiências com medição e contagem determinam ou pulverizam grande parte das pesquisas contemporâneas. O presente programa mostra uma série de trabalhos em que a câmera de vídeo é usada como ferramenta de cálculo ou medição. Propõe somas, multiplicações, reduções, reversões ou mesmo a desconstrução de qualquer equação. Desmedidas. Operações que se fazem notar em territórios tão diversos quanto a natureza, a música, o corpo, o espaço urbano, o espaço doméstico, as relações sociais.

Contagem é a questão central de Prefiro sim, de Marilá Dardot, que apaga, letra a letra, dez palavras cujo sentido é sempre o de negação. Trata-se de uma contagem decrescente, em que letras são devolvidas à sua posição original, na escala do alfabeto. O cronômetro (desregulado, por certo) é o dispositivo de Attempt, de Camila Sposati, e outras escalas aparecem nesse programa: a escala de cores do Pantone, na Caixa-cor de Marcio Botner, ou a escala métrica de Alice Miceli. Em 99,9….metros rasos, a artista transfere para a imagem em movimento uma questão da matemática: qual a real distância entre dois pontos? O vídeo faz parte de uma pesquisa em processo – “Decimal Expansion Project” – e indaga sobre o infinito utilizando-se de uma found footage image de corrida olímpica.

Mas o programa não se limita às linhas retas, busca escapar ao plano. Não quer nivelar, mas ressaltar diferenças entre propostas artísticas. Dessa forma, observa a matemática acidental de Ao encontro de., o jogo inventado por Laura Belém em que falsas bolas brancas são atingidas e desenham as marcas de seus percursos e seus embates no feltro verde da mesa de bilhar.

Meia volta, volta e meia, de Sara Ramo, mede a distância entre ordem e desordem da vida doméstica. Ao demarcar o caminho traçado pelos objetos dentro de um quarto em um espaço de tempo indeterminado, a artista desorganiza seu espaço íntimo com a meticulosidade de quem resolve uma complexa conta matemática. Nessa subversão compenetrada, cria outros oceanos possíveis. Da ociosidade, retira a fábula.

A dupla PaulaGabriela investiga distâncias, mas entre corpos, ou identidades. A câmera de Tube-tunnel tenta estabelecer as distâncias entre corpos que se perseguem e se sobrepõem sem nunca se encontrar. O que está em jogo, afinal, é a possibilidade de transferência de identidades, situação que se repete de forma diversa em Homenagem a George Segal, de Lenora de Barros, que documenta sua progressiva transformação em uma escultura do artista pop norte-americano. Ou ainda em Gotejando, de Beth Moysés, que propõe a idéia da sucessão de gerações. O vídeo registra uma ação em que são subtraídos elementos de um corpo em benefício de outro. É a lógica da doação.

Há ainda as experiências métricas e rítmicas em ilha de edição. Em Face a face, Kika Nicolela trabalha a falta de sincronia entre áudio e vídeo. Embaralha pistas áudio, transformando depoimentos em uma espécie de acompanhamento musical para a imagem. Se Lygia Pape faz uma edição por metros, XY tem uma edição por frames. O trabalho é uma corrida entre a masturbação masculina e a feminina, que acontecem, respectivamente, em 939 e 1.640 frames.

À metrica videográfica somam-se os trabalhos documentais que calculam o mínimo denominador comum entre invenção e realidade. Marepe extrai uma dança exuberante de uma situação banal – o aquecimento do time de futebol de sua cidade –, em que contagem e movimento se sincronizam numa situação espetacular. Os registros de ação de Marcelo do Campo também se situam na fronteira do real e do imaginário. Numa homenagem a Godard, A Bout de Souffle coloca em cena um teste de asfixia, que provoca a mesma dúvida quanto à realidade das imagens de violência e tortura transmitidas pela televisão. O vídeo também introduz a questão do limite da resistência física. Enquanto uns lançam o infinito, outros colocam o limite.

A câmera vigilante de Unus Mundus – Round the World, de Cinthia Marcelle, opera entre o banal e o extraordinário. O vídeo começa com o registro de uma típica cena em que “nada acontece” e que convencionamos chamar de “normal”. Do não-acontecimento, a situação evolui em uma coreografia de Kombis que giram ao redor de uma praça. A rotina, inexorável, é corrompida pela própria repetição. O trabalho introduz a condição do ciclo, do circuito, do laço, do sistema. O loop é nítido nos giros perfeitos de Lacrimacorpus, de Janaina Tschäpe, e menos evidente em Richard, de Dora Longo Bahia e Anne Marie Peña, em que o guitarrista não consegue escapar jamais aos dois acordes.

Divisão e compartilhamento do espaço. Coexistência pacífica nos grandes centros urbanos. Esses são os desafios que se apresentam em Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos, de Dias & Riedweg, em que dez pessoas dividem a área interna de um cubo, sem que uma vida esbarre ou abale a outra. O cubo reconstrói os quartos onde vivem porteiros de edifícios ricos de São Paulo e faz parte de uma instalação montada na 24ª Bienal de São Paulo, que compõe um retrato coletivo a partir de histórias pessoais. Ocorre a essas vidas uma espécie de enquadramento nos moldes de uma mesma categoria social.

O quadro é a pesquisa de Lucas Bambozzi em Postcards. Seu project in progress consiste em reenquadrar com a câmera de vídeo os principais cartões- postais das cidades que vem visitando nos últimos anos. Sob o mesmo ângulo ou em olhares ligeiramente modificados, o artista procura discernir entre o óbvio e o particular de cada paisagem fotografada. Na paisagem globalizada localiza o regionalismo. Em BMG-8970, a câmera e o carro de Raquel Kogan e Lea van Steen perseguem um espelho instalado na carroceria de uma caminhonete. Ao enquadramento da cidade soma-se aqui a imagem invertida e em movimento, criando uma ótica instável e caótica do contexto urbano.

A instabilidade é o efeito provocado também por De revolutionbus orbium coelestium, da dupla Leandro Lima e Gisela Motta, em que a câmera acompanha o movimento de uma criança pulando em uma bola. Estabilizada no centro do quadro, a bola representa a Terra, na época em que o tratado de Copérnico, que estabelecia o Sol como centro do sistema, ainda não vigorava. Leandro e Gisela mexem com o centro do espectador, ao fazer uma colagem digital de imagem do globo terrestre vista desse satélite.

Lia Chaia também desafia as escalas ao soprar um balão estampado com estrelas e nomear seu vídeo de Big Bang. Essas são propostas coincidentes com meios distintos: um lido com a tecnologia, outro com o precário. A manipulação de matérias baratas, perecíveis e corriqueiras nos conduz novamente à geração de Lygia Pape que, estimulada por questões políticas, negou o espaço institucional e os sistemas da arte para lançar-se na vida cotidiana e inaugurar uma estética da precariedade que está na câmera instável de artistas como Lia Chaia, Sara Ramo e Camila Sposati. É na “falha’ e no “defeito” e na desarticulação da tecnologia que se escondem as qualidades essenciais desses trabalhos.

Paula Alzugaray
Maio de 2006