Regina Vater: Quatro Ecologias
Data
22 de maio a 15 de julho de 2012
Curadoria
Paula Alzugaray
Artista
Individual de Regina Vater
Local
Oi Futuro Flamengo | Rio de Janeiro
Resumo
Regina Vater: Quatro Ecologias
Regina Vater desenvolve um corpo de trabalho complexo que articula fotografia, filme, vídeo, performance, instalação e uma obra gráfica experimental que compreende livro de artista, arte postal e poesia visual. A natureza poética e ecológica de sua obra contribui para o debate sobre a emergência de uma ecologia midiática nos âmbitos da arte e da vida contemporânea. Abre-se, assim, a uma possibilidade de leitura à luz do conceito das “três ecologias”, de Félix Guattari, que sugere a apreensão do mundo por meio de um ponto de vista ecológico, desdobrado em três instâncias: ambiental, social e mental.
No âmbito de uma ecologia ambiental, Regina Vater entende que a natureza não pode ser separada da cultura. Sob o ponto de vista de uma ecologia social, sua obra se oferece como canal de reflexão sobre a qualidade das relações humanas e dos ambientes sociais – além de ferramenta de reconstrução poética desses espaços. Associado à ecologia mental, seu corpo de investigações abrange o tempo, o espaço e as cosmogonias antigas. O livre fluxo de seu pensamento se dá em um campo de confluências que favorece ainda o aparecimento de uma quarta ecologia, transmidiática, que opera transversalmente entre arte, natureza e tecnologia.
Paula Alzugaray
Curadora
OBRAS
PlayFEUllagem, da série Cinematic Stills, 1974
Tina América, 1976
Miedo, 1975
Posando para a eternidade , da série Cinematic Stills, 1976
Fal’Arte, 1978
Luxo Lixo, 1976
EAT FAT, 1974
Desejo, 2012
Eletronic Natures, 1985-1995
Conselhos de uma lagarta, 1976
PROGRAMAS
Nós, 1973
May Day, 1983
Videoart25″, 1978, 1’5″
My Companion Cage, 1979-1986, 3’30”
The End 1983, 13′
Making l’Age, 10′
Saudades do Brazil, 25′
Pindorama, 15 ’55’
Garfadas, 2012
Regina Vater: Quatro Ecologias
Em pesquisas que abrangem as relações entre sociedade, natureza e tecnologia, Regina Vater desenvolve, ao longo das últimas quatro décadas, um corpo de trabalho complexo e sofisticado que contribui de maneira expressiva para o debate sobre a emergência de uma ecologia midiática nos âmbitos da arte e da vida contemporânea. A natureza poética, metafísica e ecológica de sua obra – sempre tecida em impulsos transmidiáticos que favorecem cruzamentos entre linguagens – cria condições para que ela seja pensada à luz do conceito das “três ecologias” de Félix Guattari.” Nesse texto de 1989, o filósofo francês sugere a apreensão do mundo por meio de um ponto de vista ecológico, desdobrado em três instâncias: a ecologia social, a ecologia mental e a ecologia ambiental.[1]
Escrito no ano da queda do Muro de Berlim, o livro testemunha o momento em que as oposições dualistas tradicionais que guiaram o pensamento social e as cartografias geopolíticas levam um golpe definitivo. Guattari registra com propriedade o fim da dicotomia Leste-Oeste, mas, no que concerne ao eixo Norte-Sul, ele apenas intui a reviravolta que o mundo viria a experimentar no século 21, ativada pela crise do capitalismo e pelo renascimento dos movimentos sociais fomentados na internet.
Em seu momento, Guattari vislumbra a emergência de “sistemas multipolares” incompatíveis com bandeiras maniqueístas. E é nesse contexto de ruptura, descentramento e multiplicação de antagonismos – que configura, afinal, o nascimento da cultura de rede – que o pensador vê surgirem as novas problemáticas ecológicas. O pensamento ecosófico de Guattari sugere, portanto, estratégias para a restauração das práxis humanas e a reinvenção de uma perspectiva ético-política em seus mais variados domínios: da vida nas cidades às subjetividades individuais e coletivas.
Regina Vater inicia sua atividade artística no Brasil, 30 anos antes da queda do Muro de Berlim, quando o mundo vivia o auge da polarização Leste-Oeste e a sociedade brasileira sofria o cerceamento de sua autonomia e liberdade expressiva, sob o controle de máquinas policiais e militares. A ecosofia de Regina Vater se configura em resposta a esse ambiente. Seus processos de criação artística estão enraizados no ambiente relacional da arte da década de 1970, quando ela assume seu trabalho como um canal de reflexão sobre a qualidade e a degradação das relações humanas e dos ambientes sociais.
Ao tomar como missão a elaboração de novas formas de comunicação e colaboração, a artista assume uma posição que culmina em ações micropolíticas de restauração das práxis sociais e de reconciliação com a natureza.
Magi (o)cean (1970) é o primeiro grande marco desse projeto artístico inteiramente dedicado à reconstrução poética de subjetividades e espaços ambientais ameaçados. Realizada antes que o termo “instalação” começasse a ser aplicado às operações artísticas espaciais, Magi (o)cean pode ser interpretada como uma obra-ritual, em que a artista convoca amigos para a construção de um altar para Ogun e Oxumaré, na Praia da Joatinga, no Rio de Janeiro. Quase todos os materiais usados na escultura – algas, pedras, plantas, conchas, garrafas, velas – foram coletados na praia, “reciclados” de rituais passados. No ritual proposto, os objetos encontrados foram organizados ao redor das imagens de uma Nossa Senhora negra – aqui interpretando a deusa Oxumaré, que no candomblé é a serpente e o arco-íris –, e de Ogum, sincretismo de São Jorge, que demarca uma presença significativa nessa obra ambiental. Ambas as estátuas de santos foram levadas pela artista especialmente para o evento.
Mártir na religião católica, caçador de dragões na mitologia nórdica e senhor dos metais na mitologia ioruba, São Jorge é festejado com um feriado. Esse santo ferreiro e guerreiro, que todo dia 23 de abril abre um intervalo nas atividades laborais no Rio de Janeiro, ganha significação especial quando colocado em relação à dimensão lúdica da ação ambiental de Regina Vater. Afinal, se São Jorge instaura um dia de festa e descanso, a então jovem artista larga a pintura – depois de dez anos de estudos e prática nesse âmbito – e vai à praia. Habita esse espaço não com a intenção de simplesmente ocupá-lo escultoricamente, mas sim de reconstruí-lo criticamente.[2]
Nessa ocupação crítica do espaço, essa obra-ritual se identifica com o que reconhecemos hoje como instalação. Nesse caso, uma instalação efêmera, já que no fim do dia seria varrida pela enchente da maré. A mesma maré que, oito anos depois, iria cobrir e esvanecer a palavra ART desenhada na areia, em fotografia da série Veart.
Magi (o)cean também promove uma socialização que a aproxima das tradições performáticas que então se firmavam no horizonte da arte experimental norte-americana. Na impossibilidade de subsistir como um objeto de arte perene, portanto, a ação coletiva foi documentada pelo fotógrafo Sidnei Weismann. Desde a coleta do material, até a escolha do sítio e a construção da estrutura do altar, tudo foi documentado em fotografia. A artista enviou para o Museu de Arte Moderna três painéis com os registros de toda a ação, mas o trabalho não foi classificado como instalação, e sim como fotografia. “Fiquei traumatizada com essa história e voltei a pintar em 1971”, conta Regina, que se lançou na atividade artística em 1959, pintando a óleo paisagens da Praia do Arpoador e fazendo aulas no ateliê de Iberê Camargo. Alguns desses óleos estão hoje na coleção do Museu Nacional de Belas Artes.
Com a volta aos pincéis, ela inicia a vasta e riquíssima série Nós e sua ocupação crítica da praia poderia ter ficado para trás, como um breve intervalo de uma promissora carreira de pintora. No entanto, Magi (o)cean não foi uma ação pontual, realizada num Dia de São Jorge ou outro feriado qualquer. Embora a artista não soubesse disso naquele momento, foi uma ruptura definitiva, que determinou uma postura de trabalho que ela não abandonaria mais.
Com essa obra colaborativa, elaborada lúdica e alegremente na Joatinga, Regina Vater plantou na areia a semente de um projeto de reconstrução social, mental e ecológica que iria se desdobrar em mais de cem instalações – boa parte delas inspiradas em mitos afro-brasileiros e amazônicos – e vídeos e videoinstalações realizadas ao longo de 40 anos de trabalho.
De Magi (o)cean emanam as quatro dimensões ecológicas da obra de Regina Vater. A maneira como a instalação reinventa sociabilidades expressa sua qualidade de ecologia social. A forma como o lixo da praia é modificado pela ação artística e transformado em oferenda determina sua ecologia ambiental. A ecologia mental está no gesto sincrético e ritualístico, fundamental para instaurar outra dimensão temporal ao trabalho. “O uso desses santos já me apontava a um tempo cosmológico, arcaico, que existe no Brasil. Absorvi isso da cultura carioca”, diz Regina, que 13 anos depois retornaria a Ogum, usando a planta Espada de São Jorge na instalação Vide (o) Dolorido e a planta comigo-ninguém-pode em uma série de instalações de mesmo nome.
É possível ainda visualizar em Regina Vater um campo para além da ecosofia tríade de Guattari. Ele está circunscrito na natureza poética e ecológica de seu trabalho, sempre tecido em impulsos transmidiáticos, favorecendo cruzamentos entre linguagens e propostas. Em Magi (o)cean, uma ecologia transmidiática se desenha a partir da articulação das palavras no título – que funde as instâncias do mágico e do oceano. Dessa forma, Regina planta no seio da tradição poética a sua obra plástica.
Ecologia social
A sociabilidade promovida em Magi (o)cean, na forma de uma criação coletiva, alinha-se às dinâmicas (qualidades) de um “ser-em-grupo”, definido por Guattari como o desenvolvimento de práticas específicas que tendem a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do contexto urbano, do trabalho, do casal, da família etc. As transformações impulsionadas em Regina Vater a partir da experiência dessa escultura social (realizada coletivamente como uma forma de escape e expressão sob a repressão e a ditadura no Brasil) seriam irreversíveis.
Em 1971, como um efeito disso, a artista elege a figura do nó como forma de representação do estado psicológico da sociedade brasileira. A rejeição da jovem artista aos padrões vigentes do sistema de arte começa a se manifestar nos desenhos de nós realizados sobre sacos de supermercado. Ao longo dos dois anos seguintes, a série Nós se desenvolveria em desenho sobre fotografia, litografia, serigrafia, pintura e culmina em uma ação ritualística na Praça Nossa Senhora da Paz, no Rio. Nesse evento – da mesma ‘família’ de Magi (o)cean –, a artista convoca pessoas de todas as idades e procedências a tramar uma imensa “cama de gato” no centro da praça. Enquanto adultos se atavam uns aos outros na composição de uma rede coletiva, as crianças se divertiam pulando corda. São de beleza ímpar as fotos de Hugo Denizart e Sérgio da Matta que registram essa ação, depois convertida em audiovisual.
O dado notável e libertador desse evento é a transformação do nó em matéria criativa – o que acabou por convertê-lo em uma autêntica cerimônia de “desatar nós e reatar laços.” Vale notar que, antes da ação na Praça da Paz, Regina Vater tentou realizar uma intervenção urbana em São Paulo, mas foi desencorajada por curadores locais, que temiam a intensidade da repressão política de então. Sua ideia era instalar o evento na esquina das ruas Direita e São Bento. “Íamos amarrar com cordas aquela esquina e perguntar para os transeuntes o significado do nó.” O projeto das entrevistas foi então deslocado para o Rio de Janeiro e o som do audiovisual Nós é a voz do povo na praça. As entrevistas foram feitas por Halina Grynberg, que investigava os sentidos das cordas, dos nós e dos laços, fazendo perguntas como “Qual o nó dessa questão aqui?”; “Dá pé desarmar os nós e conservar os laços?”; “Você se sente amarrado?”, “Quais são as coisas que te amarram na vida?”, referindo-se tanto ao que prende como o que liberta, tendo em conta o sentido figurado do verbo amarrar: aquilo que se ama.
O franco interesse no diálogo com o outro é outra das raízes do generoso projeto artístico de Regina Vater, que teve na Joatinga e na Praça da Paz seu despontar naturalmente relacional. Com a apropriação de matérias do cotidiano – sacos de supermercado, lixo da praia etc. – em favor do experimentalismo e da promoção de rituais de purificação coletivos, Regina Vater se alinhavava naquele início dos anos 1970 às mais vanguardistas experiências de seu momento, que procuravam fundir arte e vida. Mas foram as pinturas sobre tela, que tinham como tema corpos femininos amarrados que, no entanto, ganharam o prêmio do Salão Nacional de 1972.
Regina ganhou esse prêmio com pinturas e desenhos em ecoline e nanquim, que se rendiam à tradição da Nova Figuração – tema e linguagem de sua primeira individual, em 1966. “Carlos Drummond elogiou os Nós. Mas eu sentia que estava me coibindo, eu não era uma conformista, não acreditava que ficaria naquilo. Na paralela, eu riscava as fotografias de nós”, conta Regina, que começaria a desenhar sobre fotos e sobre sacos de supermercado depois de abandonar as pinturas das mulheres amarradas.
Embora ela hoje considere que os corpos amarrados pintados em óleo sobre tela tenham sido “uma recaída”, foi esse prêmio que a levou para Nova York em 1973, onde pôde continuar a dar vazão às suas inquietações. A artista conta que, logo que chegou lá, viu-se em uma encruzilhada: Antonio Henrique Amaral tentou fazê-la voltar para a pintura, mas Hélio Oiticica a incentivou a continuar experimentando. “As grandes parteiras do meu trabalho foram o Iberê e o Hélio. Foram eles que deram força para eu ser eu mesma”, revela.
Em Nova York, ela passou um ano fotografando lixo. De restos de comida nas mesas dos restaurantes do Whitney Museum e do MoMA, ao lixo acumulado nas ruas. Mas o interesse pelo lixo veio com ela do Brasil, onde havia surgido juntamente com o interesse pela fotografia. “Minha paixão por fotografia começou no Rio, ao registrar, na manhã da Quarta-feira de Cinzas de 1973, o lixo do carnaval carioca”, disse uma vez. Na viagem ao exterior, decidiu trabalhar a partir de LuxoLixo (1965), o poema concreto de Augusto de Campos, construído como paródia de marcas comerciais. Ao escolher o poema como tema, procurando dar-lhe uma forma audiovisual, Regina Vater também dava continuidade à sua critica ao consumo, já esboçada nos nós desenhados sobre sacos de supermercado.
O lixo nova-iorquino seria processado em diversos trabalhos, dando vazão a um vigoroso impulso transmidiático. A série se desdobraria em audiovisual, arte postal, gravura, escultura, instalação e livro de artista. Tudo era uma questão de reciclagem: o que fazer com os restos da sociedade de consumo? Antecipando-se a uma preocupação ecológica que tomaria o mundo depois dos anos 1970, a artista distribuía esse lixo coletado entre as diversas mídias que experimentava. “Eu jogava o lixo pelo correio”, diz ela, em referência aos Postalixos (1973), cartões-postais enviados a amigos e instituições brasileiras. Walter Zanini, diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) entre 1963 e 1978, recebeu o Postalixo – Land(e)scape NY 74 (1974), que foi assimilada à coleção do museu. Na face fotográfica do cartão-postal, a imagem de embalagens de cigarros e refrigerantes; no verso, uma carta da artista ao curador, oferecendo o trabalho para a exposição JAC (Jovem Arte Contemporânea).
Outros destinos do lixo nova-iorquino foram uma série de três gravuras impressas no Pratt Institute (NYC), o livro de artista Garbage (1973) e duas categorias de objetos: NY Recuerdos (1973), caixinhas de acrílico transparente contendo diferentes tipos de lixo, e um tabuleiro de jogo, cujas peças eram fotografias. Dos NY Recuerdos ficaram apenas registros fotográficos. Como em Magi (o)cean e no evento dos Nós, trata-se de uma obra efêmera que sobreviveu na fotografia. E o tabuleiro era uma peça única, feita para presentear o músico John Cage, que Regina conheceu em 1976 e tornou-se uma de suas grandes influências no campo da poesia visual. A Cage dedicou duas obras, o vídeo ComPANheiro Cage (1979) e o livro de artista Sounds Good (2003).
A obra definitiva da série com dejetos é o audiovisual LuxoLixo, que compila a maior parte das fotografias tiradas naquele ano de 1973. As imagens contrapõem a degradação das ruas de Manhattan à luxúria de suas vitrines. No áudio, uma pérola. Uma peça composta em uma tarde no apartamento de Hélio Oiticica, em que todos os aparelhos – vários rádios e televisores – foram ligados ao mesmo tempo, e dividem as atenções com a leitura que HO produz de um poema de Regina. O resultado é um processamento crítico e criativo da poluição visual, ambiental e sonora que se soma em nossos tempos.
Em meados de 1974, Regina Vater deixa Nova York para uma viagem por vários países da América Latina. Foi à Guatemala, Colômbia, Peru e Argentina. “Em NY, percebi como o Brasil tinha uma postura desdenhosa e imperialista em relação à AL. Minha consciência política chegava até a questão da ditadura, não tinha uma dimensão globalizante.” Dessa viagem surgiu Urbación (fotografado em 1975, produzido como piloto em 1976 e finalizado em xerox colorido em 1980) e depois Miedo (1975) e Tina América (1976).
Urbación, palavra inventada a partir da junção de ação e urbana, é uma explosão de cores, texturas e grafismos que reflete a vibração apaixonada com que Regina olhou e se envolveu com as culturas por onde passou. Mas o trabalho não se demora em clichês de latinidade. Em vez de simplesmente congelar essas realidades em fotografia, ela lhes confere uma condição móvel e interativa, já que Urbación é um livro de artista em formato de jogo, onde interagem as pulsões artística e poética de Regina Vater.
A obra é formada por 20 fotografias tiradas de palavras pintadas em muros e painéis comerciais, editadas na forma de cartas de baralho. Precisamente por ser um jogo, cuja regra é “deixar a poesia vencer, sempre”, o trabalho só se realiza a partir da interação do espectador. Embora a obra possa ser usada apenas por uma pessoa (o jogador utiliza as palavras do naipe para construir seu poema), ela atinge melhor o seu objetivo com a relação entre duas ou mais pessoas como parceiros no jogo. “Cada um constrói o seu poema e, no final, vota-se no melhor. Portanto, trata-se de uma obra antiego, na qual a poesia vence sempre”, explica.
Nos anos 1970, as publicações de artistas – livros, revistas, cartões- postais e jogos de cartas – formam um terreno fértil para o encontro entre as artes plásticas e a poesia visual. Regina se debruça sobre elas não só para subverter as leis do mercado e criar circuitos alternativos de produção e exibição, mas também para tornar a arte contemporânea mais próxima das pessoas, para envolvê-las em sua iniciativa. Para fazer da arte um projeto participativo.
Se nos novos formatos e suportes da arte conceitual (novos em relação aos meios “tradicionais” – a pintura, a escultura, o desenho, a gravura) observamos operações de deslocamento da unicidade para a multiplicidade, em suas escolhas Regina Vater abdica do individual em favor do coletivo.
A qualidade dialógica de Urbación mantém-se no livro de artista Tina América, cujas fotografias foram feitas com um só rolo de filme. Nessa obra, Regina se autodocumenta interpretando 12 papéis femininos, que vão de guerrilheira a dona de casa, passando por intelectual, vamp e sedutora. O formato escolhido para esse registro é a fotografia em preto e branco, em tamanho de foto de passaporte. Isso acaba nos remetendo a pensar as fronteiras e os problemas geopolíticos da América Latina, embora esse definitivamente não seja o tema central da obra e da artista.
O xis da questão de Regina Vater é a mulher, em um momento em que o movimento feminista estava apenas começando. Embora se refira a padrões latino-americanos, Tina América pode ter sua raiz no Rio de Janeiro, onde, conta a artista, foi entrevistada no fim dos anos 60 pela revista Realidade para uma edição dedicada à mulher. O convite à participação veio, segundo ela, por sua condição emancipada para seu tempo: saiu de casa aos 20 anos para trabalhar e morar sozinha. “Naquela época, isso era raríssimo na classe média: mulher só saía da casa dos pais para casar.”
Em Tina América, Regina Vater alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade. Aqui ela teve oportunidade tanto de vasculhar suas próprias identidades quanto de produzir uma reflexão sobre os papéis da mulher e as relações de poder e controle social da América Latina. Além disso, com suas Tinas da América, Regina também não deixa de ter preparado o terreno para as histórias das Rosângelas, das Cindys e outras artistas da América do Sul e do Norte, que, do fim dos anos 1970 até as décadas seguintes, mapeariam os estereótipos da mulher, produzindo cenas de suspense ou de romance.
Ao utilizar a própria imagem para representar conjunturas políticas, sociais e éticas da América Latina, Regina Vater dialoga com a primeira geração de realizadores de vídeo no Brasil, que, a partir de 1975, consolida o confronto da câmera com o corpo como o dispositivo básico dessa linguagem nascente[3].
No entanto, em vez de se comportar como um “Narciso no espelho” – ideia desenvolvida por Rosalind Krauss para se referir ao modo como o artista colocava seu corpo entre duas máquinas, a câmera e o monitor, de maneira a produzir uma imagem instantânea[4] –, Regina Vater usa o corpo como expressão política.
O mesmo gesto de carregar no corpo uma mensagem política já havia aparecido no vídeo Miedo (1975), realizado em Buenos Aires, e na ação Macacos Chineses (1976), feita no MAC-USP, em São Paulo – dois manifestos contra a censura militar. Ao colocar o próprio corpo como suporte de discurso em dois epicentros da repressão nos anos de chumbo, a artista demonstrava uma contundência que logo se transformaria em militância por uma ecologia ambiental – atitude que nos anos 1990 se espalharia em coletivos artísticos, reconhecidos como artivistas.
O caráter performático dessas obras se repetiria em Conselhos de uma Lagarta (1976), cineinstalação realizada com filmes Super-8. Embora em casos como este a política aparentemente dê lugar à poética, é necessário afirmar que a obra de Regina Vater se localiza sempre em um espaço fronteiriço entre a ação política e a criação artística.
A descoberta labiríntica do outro está na origem de Conselhos de uma Lagarta (1976), criado como uma reverberação de Máscara de Espelhos (1967), obra relacional de Lygia Clark. A frase “Seus olhos são o meu espelho”, utilizada certa vez por Lygia para explicar o trabalho, é o ponto de partida da cineinstalação, composta de duas projeções posicionadas em espelhamento. Em uma das telas há várias Reginas autorretratadas, documentadas ao longo de seis meses. Na edição do filme, essas imagens são intercaladas com frases extraídas do livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, escritas à mão em uma pequena agenda. O texto reproduz o diálogo entre Alice e a lagarta. Na segunda tela, é projetado um filme com dezenas de olhos fitando a câmera (ou encarando a própria Regina, projetada na tela à sua frente). Os olhos de Lygia Clark estão entre esses olhos filmados.
“Quem é você?”, pergunta a lagarta. “Eu gostaria de ser um pouco mais ampla, moço, se o senhor não se importar. Três polegadas é um tamanho muito miserável”, diz Alice no diálogo que reflete a inquietação da artista em relação à autoimagem e ao seu contato com o outro. No áudio da instalação, o ruído do tique-taque de um relógio amplifica para toda a sala a dimensão que o tempo passará a assumir nas obras de Regina Vater. O trabalho faz duas claras referências ao tempo: o relógio e as frases coladas na agenda.
Além de ser a primeira instalação realmente concebida como tal, Conselhos de uma Lagarta é um dos primeiros trabalhos com imagem em movimento, realizado em um momento em que os artistas se voltavam à experimentação com cinema e com as novas tecnologias do vídeo. Embora a artista, efetivamente, só tivesse sua própria câmera de vídeo dois anos depois de chegar em Austin, Texas, em 1987, seu interesse pelo movimento – e pela inserção do fator temporal no trabalho – começou 13 anos antes, em Nova York. Lá ela inventaria a técnica dos Cinematic Stills como uma maneira de observar o tempo e de fazer cinema.
Cinematic Stills é sua série mais vasta, iniciada em 1974 e nunca encerrada. Parte de um princípio básico: a observação da passagem do tempo nos objetos do mundo. Uma manifestação pelo fim da Guerra do Vietnã (maio de 1975), uma passeata pela paz no Central Park (durante o governo Reagan, em 1983), o feriado de 4 de Julho nos Estados Unidos (1980), as curvas de um rio, janelas de apartamentos, as ondas do mar batendo na areia, balões a gás ganhando o céu, um raio de sol entrando por uma claraboia, o registro de um vendedor de mate/limão na Praia de Ipanema. Qualquer fragmento de mundo pode ser desdobrado em vários Cinematic Stills.
Mais que um fragmento, PlayFEUllagem (1974) é uma construção poética, um Cinematic Still em forma de brincadeira com as palavras fogo e folhagem, em inglês e francês. Foi interpretada performaticamente pelo ator Antonio Pitanga, no Jardin de Luxembourg, em Paris, onde Regina passou seis meses, em um intervalo de sua estada em Nova York, entre 1973 e 1975. Na capital francesa, ela também conheceu Lygia Clark, onde a visitou e fotografou sua casa para a série X-Ranges (1974-1976), editada no formato de um livro com fotos das casas dos artistas John Cage, Vito Acconci, Hélio Oiticica e Lygia Clark.
Fragmento ou construção, os Cinematic Stills são trabalhos que exprimem a duração do tempo. Nesse sentido, a webinstalação Desire, realizada especialmente para a exposição no Oi Futuro, em maio de 2012, é também um Cinematic Still – ou uma atualização de sua ideia, a partir da experimentação com novas mídias digitais – porque promove a observação da passagem do tempo sobre uma maçã, em tempo real, na internet.
Ecologia mental
A perspectiva ecosófica de Félix Guattari prevê “linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios”[5]. Essa ecosofia, que se reflete diretamente nos processos de subjetivação humanos, assume claros paralelos nos caminhos artísticos de Regina Vater. Se, inicialmente, os trabalhos da artista estão engajados em situações de resgate de densidades sociais, logo suas ações vão se voltar sobre o tempo, o espaço, as cosmogonias antigas. Essas investigações estão intimamente sintonizadas com a ecosofia mental de Guattari, no sentido de que buscam promover e reinventar as relações do sujeito com o tempo que passa e com os mistérios da vida e da morte.
A observação que Regina Vater empreende sobre a passagem do tempo, presente nos Cinematic Stills, vai aos poucos gerar um interesse por um tempo cosmológico, intrínseco às filosofias e mitologias amazônicas, indígenas, africanas e ancestrais. Essa passagem começa a se revelar a partir da série de desenhos, trabalhos em xerox e instalações Comigo Ninguém Pode.
“Comigo-ninguém-pode, a planta totem do povo brasileiro, esse povo que morre nasce, morre nasce”, diz José Celso Martinez Corrêa em performance realizada na memorável montagem da instalação de Regina Vater no Teatro Oficina (SP), em 1992. A série de trabalhos sobre a planta comigo-ninguém-pode tem início quando a artista retorna ao Brasil depois de sua primeira temporada no exterior e começa a fotografar a planta nas fachadas e entradas de casas e estabelecimentos comerciais do Rio e de São Paulo, onde, segundo a crença popular, absorve as energias negativas e protege contra inveja e mau-olhado. Transportada para o contexto do corpo da obra de Regina Vater, essa planta brasileira altamente tóxica, porém carregada de sentidos, é usada como um agente regenerador de uma sociedade que, em 1982, ainda vivia sob repressão militar e num ambiente de crise latente.
Montada 11 vezes em mais de dez anos, a instalação Comigo Ninguém Pode ganhou sua primeira edição em 1984, na Fisher Gallery, da Universidade da Califórnia do Sul, em Los Angeles, numa homenagem à instalação Tropicália de Hélio Oiticica. Inspirada no mito universal da árvore da vida e na tradição das plantas sagradas na cultura africana, esta é também uma meta-obra, que contém em seu interior outras instalações, desenhos, fotografias de brasileiros anônimos e objetos.
Esse aspecto agregador coloca o trabalho numa posição intermediária entre os rituais cultivados em espaços públicos nos anos 1970 e as instalações artísticas, às quais Regina Vater iria se dedicar com intensidade – assim como ao seu desenho e projeto – durante as décadas de 1980 e 1990.
Os mitos afro-brasileiros, que centralizam o altar construído na Praia da Joatinga, vão reaparecer com vigor em trabalhos instalativos como Amuleto para Boa Fartura e Boa Fortuna (1994), Caminho de Oxalá (1993), Amanajé (1989), Mantra para Oxalá (1993), AXEOXUM (1992), Oxalá Que Dê Bom Tempo (1978) e Amonamen (1999), entre muitas outras.
Se, dentre seus muitos sentidos expandidos, a obra de arte de Regina Vater já funcionava como ritual e festa, agora, com as instalações que assumem o alimento como matéria – o pão, a pipoca, a casca de ovo, o mel, o sal –, ela ativa ideais simbólicos de nutrição e cura, limpeza e iluminação. Por um lado, esses materiais correspondem à intenção celebratória do trabalho, mas, por outro, fazem parte de uma prática de resistência. “Quem não tem cão caça com gato”, lembra ela. “Essa é a maneira de sobrevivência da maior parte dos brasileiros.”
A artista aponta que a escolha do material é frequentemente um insight, relacionado às suas leituras em antropologia, poesia e filosofia, mas depende também de suas possibilidades econômicas, já que “raras vezes” teve seu trabalho financiado. “Realizei tantas obras espremidas dos meus vinténs, que isso acabou se transformando numa maneira de pensar visualmente”, afirma. Portanto, muito antes que essa prática de resistência se generalizasse como um modus operandi da arte brasileira, passando a ser reconhecida como uma “estética da gambiarra”, já se tratava em Regina Vater de um modelo de economia de custos e de poder de síntese que, afinal, é altamente ecológico.
Essa postura é visível em diversas mídias e aparece de maneira sutil e bem-humorada no vídeo Saudades do Brasil (1981, ano da morte de Glauber Rocha), uma conversa telefônica sobre Glauber e cinema. Falando em seu inglês com forte sotaque carioca, Regina tenta introduzir seu interlocutor ao conceito da “estética da precariedade” existente no Brasil. Ao som de Caetano Veloso, Maria Bethania e muita música brasileira, o filme justapõe cenas corriqueiras (anticartões- postais) do Rio de uma América do Norte nevada.
É notável, também, a síntese atingida em esculturas como Anacronismo (1985), inspirada em mitos amazônicos, formada por um pau, um pedaço de pele, uma pena de pássaro e dois cascos de tartaruga. O trabalho pode ser interpretado como uma súmula de toda a pesquisa realizada para a série de Yauti Marandua, iniciada em 1979 com uma instalação que utilizava um jabuti e um coelho branco vivos numa gaiola, acompanhada de dois desenhos hiperrealistas da tartaruga enclausurada.
A série Yauti Marandua – produzida em desenhos a bico de pena e grafite, fotomontagens e instalações – faz uma leitura cruzada de mitos amazônicos e europeus associados às dimensões do tempo. Baseia-se no mito amazônico do yauti (jabuti) e nas fábulas europeias que associam o coelho com o passar do tempo – o coelho de Alice, por exemplo, carrega um relógio e está sempre atrasado. Nesse sentido, pode-se atribuir também a Conselhos de uma Lagarta a dimensão de uma ecologia mental, pelo fato de a obra enfatizar a relatividade das medidas de tempo contidas na obra de Lewis Carroll.
Além da economia que se expressa na fragilidade essencial dos materiais, o poder sintético das instalações também é visível na forma que as mesmas assumem. Entre os trabalhos que se afirmam como reflexões sobre o tempo e o espaço, chamam a atenção dois grupos de obras que se organizam sobre os mesmos padrões construtivos.
Há, por exemplo, uma série de obras que se organizam como feixes de luz ou incidências de raios, atravessando os espaços expositivos, desde o teto até se projetarem no chão. Esses caminhos luminosos – que às vezes também sugerem chuvas – são feitos de conchas, plumas, pipocas ou miçangas. Entre eles, AXEOXUM (1992), Amanaje (1989), Tika Unikana (1990), Orora (1996), Yalode-Oshun (1990), Amonamen (1999), Om mani Padme Hum (2009). Em Memória da luz (2009), a matéria projetada em forma de feixe é um poema visual impresso em acrílico transparente e suspenso em correntes finas.
O segundo padrão construtivo observado nas instalações é o círculo, elemento gráfico preponderante especialmente dentro do grupo das instalações poéticas. Assim acontece em O Que Falamos se Transforma em Nossa Morada (2003), que encerra um poema sufi em um círculo de pedras que circunda um lampião. Esses círculos, que muitas vezes são praticados em esculturas e instalações a céu aberto – em iniciativas que estabelecem certos nexos com a land art –, podem também se desdobrar em formas relacionadas, como a espiral de Para um Tempo de Guerra (2007), construída com pães, pedras e um trecho de poema de César Vallejo, ou o símbolo do infinito de Ninho de Cobras (1988), instalação realizada com 88 fotocópias em P&B das páginas de vários livros sobre mitologias.
Ainda no grupo dos poemas visuais, chama a atenção a contundência atingida pelos objetos Osso de Apolo (Grécia, 1974) e Ovo Cósmico (NY, 1980). No primeiro, a palavra TIME (tempo, em inglês) é impressa sobre pedra encontrada na caverna do Monte Parnasus, “onde Apolo fazia suas bacanais.” No segundo, a mesma palavra estampa a casca de um ovo quebrado e vazio. Combinadas, essas duas imagens têm o poder de sintetizar a ideia contida em 30 anos de instalações. Elas representam a habilidade de uma artista que, assim como as aranhas descritas nos mitos amazônicos, soube tecer relações entre o imediato e o longínquo, o perene e o efêmero, a vida e a morte.
Ecologia ambiental
A web instalação Desire (projetada em 2010 e produzida em 2012) é um eco de Ovo Cósmico e de Osso de Apolo, 30 anos depois. O projeto consiste em uma maçã carimbada com as palavras DESIRE e DESEJO, colocada no espaço expositivo sob um foco de luz intenso e sob a mira de uma webcam que possibilita a observação de sua decomposição, ao vivo, durante todo o período da exposição. Inspirada na filosofia budista, essa instalação performática permanece aberta à participação do público por meio de uma página no MY SPACE. Lá, os espectadores são convidados a postar poemas curtos relacionados ao tema do trabalho. Essas intervenções poéticas, finalmente, são projetadas no espaço expositivo, fechando o ciclo.
A substituição da palavra TEMPO pela palavra DESEJO não é mero detalhe. Trata-se aqui, afinal, como bem define a artista, de “uma interpretação não muito desejável do desejo”, que expõe a olhos nus o processo de envelhecimento e morte. Nessa exposição da passagem do tempo sobrepõem-se as dimensões da vida (desejo) e da finitude (o efêmero, o perecível).
Além de se referir diretamente às dimensões temporais (e extratemporais) relacionadas a uma ecologia mental, esse trabalho evoca ainda todo o corpo de obras que problematizam a sociedade de consumo – entre elas o audiovisual Luxo Lixo e a escultura EAT FAT (1974). Esse último, um poema visual antropofágico, em que a devoração de um fragmento de letra libera uma mordaz crítica social. Desire, LuxoLixo e EAT FAT são, afinal, dotadas de sutis e sofisticadas estratégias de ações sociais convertidas em intervenções sobre o meio ambiente.
Aponta Guattari que “a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referências sociais e individuais”[6]. A conotação ambiental da obra de Regina Vater não está, portanto, vinculada à ideia de uma contemplação da natureza ou de um sentimento purista de sua defesa e preservação. Sua ecologia ambiental está enredada a uma ecologia expandida, muito mais ampla e generalizada, que envolve dimensões sociais e mentais.
Entre os trabalhos que ativam práxis ecológicas e micropolíticas do desejo, destacam-se também as séries fotográficas Nature Mortes (1986-1992) e Bodegons (1995-2002), que, de certa forma, também se relacionam fortemente com Desire. Essas três obras evocam o alto poder de sedução estética proporcionada pelas naturezas-mortas. Cada uma delas contém em si a dualidade de evocar a fartura da natureza, mas também a sua efemeridade e morte. Nesse sentido, são obras que reafirmam o que Roland Barthes e Susan Sontag apontaram sobre a relação entre a morte e a fotografia: “Todas as fotos são memento mori, lembranças de algo que já desapareceu”[7].
O tensionamento entre símbolos da cultura europeia e das culturas ancestrais ameríndias – presente em Yauti Marandua – repete-se em Nature Mortes (1987-1992). Aqui, elementos classicamente utilizados nas composições da pintura europeia de natureza-morta, como porcelanas, cálices, talheres de prata etc., são usados como receptáculos para matérias “nativas”, como plumas indígenas, conchas, peles etc. Para além da extrema beleza das composições, é explícita aqui a presença de uma natureza assassinada, expressa especialmente nas peles de onça e raposa e nas plumas de águia.
Com referências diretas à pintura espanhola, Bodegons (1995-2002), é realizado com as flores do jardim cultivado pela própria artista em Houston, Texas, mas também outros elementos como plumas, conchas e peles (é sempre bom lembrar que o cultivo do jardim atua como um desdobramento poético do cultivo de rituais sociais).
O reprocessamento técnico da natureza já havia sido explorado com propriedade na série Electronic Nature (1988-1995), composta de stills de uma natureza filtrada pela imagem eletrônica. São bichos fotografados de programas televisivos sobre o mundo animal, quando os televisores ainda permitiam a manipulação de Croma e Hue. Assim, as imagens eram ao mesmo tempo apropriadas e manipuladas, de forma a ter sua qualidade midiática ressaltada.
Tanto em Bodegons quanto em Electronic Nature, a fotografia manipulada manual ou digitalmente está a serviço de uma clara mensagem: a natureza, modificada pela cultura, já não pode ser pensada separadamente. Mais uma vez, Guattari: precisamos aprender a pensar transversalmente.
Ecologia transmidiática
Pioneira no uso artístico da imagem técnica na arte contemporânea brasileira, e autora de uma obra complexa que compreende fotografia, pintura, filme, vídeo, performance, instalação e projetos gráficos experimentais, Regina Vater foi sempre contrária às leituras lineares de seu trabalho. Atenta à necessidade de se traçarem inter-relações poéticas, metafóricas e instáveis entre mídias e conteúdos, esta publicação busca produzir um corte transversal em sua obra e é concebida à luz do que Augusto de Campos definiu como “o impulso transmidiático” da criatividade de Regina Vater.
“Entre a natureza e a tecnologia, o desenho e a textura, as artes plásticas e a poesia, o artesanato e o vídeo, evoca a linhagem de artistas transgressores como Duchamp ou Cage. Como eles, Regina está sempre, salutar rmente, ‘fora do lugar’. Autêntica ‘outsider’, está dentro e fora da ART…” [8]
Há muitos trabalhos fundamentais para se compreender esse impulso transmidiático. Em todos se manifestam também os “sistemas multipolares” a que Guattari se referiu, estratégias que apontam para contextos de ruptura, descentramento e multiplicação. Entre eles, LuxoLixo (que se desdobra em arte postal, livro de artista, audiovisual e gravura), Nós (desenho, fotografia, gravura e performance) e Comigo Ninguém Pode (fotografia, desenhos, instalação). Há ainda Ninho de Cobras (1988), que se metamorfoseia em desenho, instalação e em evento ao ar livre, envolvendo crianças e cobras.
Os projetos de Regina Vater são como serpentes: trocam de casca e se renovam em outros formatos. Para além das naturezas modificadas e das paisagens midiáticas, sua ecologia transmidiática perpassa toda a sua poética. Na grande árvore genealógica de sua obra, a raiz é social. Mas sua imensa copa de galhos se debruça sobre campos mentais e ambientais, enchendo-a de vida e exuberância.
Paula Alzugaray
Abril de 2012