Fabio Miguez e Fabio Morais: casa seLecT, Paraty

Fabio Miguez e Fabio Morais: casa seLecT, Paraty

Data
Julho de 2015

Curadoria
Paula Alzugaray

Artistas
Fabio Morais, Fabio Miguez

Local
casa seLecT, Galeria Belvedere, Paraty, RJ

Sinopse
A 24ª edição da revista seLecT elege a palavra como centro gravitacional das artes visuais. O leitor encontra aqui o uso do texto como matéria prima do trabalho artístico de Fábio Morais, Fabio Miguez, Dominique Gonzalez-Foerster, Luis Camnitzer e do artista do grafite e poeta marginal Thiago Cervan. Na casa seLecT, montada em Paraty na ocasião da Flip 2015 – Festa Literária Internacional de Paraty, realizamos uma exposição com obras de Fabio Morais e de Fabio Miguez, e um debate com a diretora Gabriela Greeb e a critica literária Eliane Robert Moraes, sobre o documentário Hilda Hilst Pede Contato, então em produção.

FABIO MORAIS, ESCRITOR DE ARTES VISUAIS

Com uma obra farta em citações, referências, armadilhas, revelações e humor, Fabio Morais, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto

Márion Strecker

Este portfólio não apresenta um artista plástico que também escreve livros. Não apresenta exatamente um escritor que atua em paralelo no campo das artes visuais. Não é tampouco sobre um poeta que organiza seus poemas de forma gráfica ou visual. Dizer que ele é mais um artista que se apropria de palavras em sua obra plástica também não parece suficiente.
Esqueça o arquétipo binário literatura/artes, embora espaço, gênero e identidade sejam questões suscitadas pela obra do artista Fabio Morais (São Paulo, 1975). Não que seja incorreto dizer que Fabio Morais é um escritor e é um artista plástico. Mas ele, definitivamente, não é um escritor e ponto. Assim como não é um artista plástico e ponto. As atividades artísticas e intelectuais se dão para ele de forma tão imiscuída que parece justo aceitar o título que ele prefere: um escritor de artes visuais.
O produto pode ser um objeto, uma instalação, uma descrição de performance imaginária ou mesmo uma publicação. O que têm em comum são o fato de serem obras de arte conceituais, em que os objetos físicos nunca serão tão importantes quanto as ideias que os motivam e os habitam.
Não vamos aqui voltar aos caligramas árabes nem aos poemas visuais do período helenístico para navegar na obra de Fabio Morais. Mas vamos reler o que ele nos oferece de epígrafes à sua obra-tese-de-mestrado, como Suicide, de 1920, do poeta francês Louis Aragon (1897-1982).

SUICIDE

Abcdef
ghijkl
mnopqr
xtuvw
xyz

Vamos reler também Z A [Elementar], de 1922, do artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), de onde salta aos olhos menos a inversão da ordem do abecedário do que a falta de um jota:

Z A
[ELEMENTAR]

Z Y X
W V U
T S R Q
P O N M
L K I H
G F E
D C B A

Na sequência, Fabio Morais inicia sua tese com um breve capítulo que funciona como comentário sobre a linearidade do espaço expositivo.

ESPAÇO EXPOSITIVO

abcdefghijklmnopqrstuvwxyz

“Cada obra (re)define em si o(s) gênero(s) a que pertence”, registra o artista.

Fabio Morais vive e trabalha em Perdizes, ao lado do campus principal da PUC-SP, epicentro dos estudos semióticos no País e bairro de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, expoentes da poesia concreta, movimento que nos anos 1950 estruturou o texto poético a partir do espaço do seu suporte. Mas formou-se em artes plásticas na Faap e foi na Universidade Estadual de Santa Catarina que escolheu fazer seu mestrado, concluído em 2013. O tema: literartura. O resultado veio em forma de uma publicação pela Par(ent)esis. Misto de pesquisa e criação, a experimentação chama-se Site Specific, um Romance.

No seu livro-tese-obra há um capítulo chamado Velatura. O termo denomina uma técnica de pintura de consiste em sobrepor camadas de tinta jogando com a transparência. No texto, Fabio Morais narra uma entrevista com ele mesmo velho, sobre a própria tese que escreve, em que as referências artísticas se desdobram e surgem afirmações como a seguinte: “A literatura serviu-me de paraquedas na queda livre das artes visuais”. Sua obra é farta em citações, referências, armadilhas, revelações e humor. Romances, dicionários, mapas, álbuns, dedicatórias e caligrafias surgem em apropriações ou diálogos de sua literartura.

Fabio Morais é ainda autor de hilários textos críticos sobre si mesmo e a própria obra. O crítico e o artista brigam diariamente, escreve. “Só não mencionei que ainda há, nessa relação entre o artista Fabio Morais e o crítico Fabio Morais, o cidadão médio, de médio para pequeno, o Sr. Fabio Morais. Mas esse triângulo jamais será abordado assim publicamente.”

DANDO UM TEMPO

Na pintura de Fabio Miguez, é do relativo isolamento das palavras, e só em seguida das relações entre elas, que secretam significações

João Bandeira

Meu tio Joel recomendava que eu abrisse o dicionário todos os dias e aprendesse cinco palavras novas. Não consegui me aplicar nisso com a devida disciplina. Mas, talvez por conta das tentativas intermitentes que fiz em homenagem a esse primeiro mentor, desenvolvi um gosto por me demorar em palavras isoladas de um texto, ouvindo de novo e de novo seus sons e prestando atenção em como cada uma delas era escrita. Da mesma maneira com que – imagino agora – um arquiteto pode se esquecer um pouco do tempo diante de uma construção, reparando no desenho de uma porta, na inclinação de uma determinada água do telhado, no encontro de materiais diferentes em um canto do piso ou na proporção de uma parede.

Pensei em meu tio e naquele hábito, que deve ter me ajudado a chegar até esta página, já na primeira vez em que pude ver as pinturas que Fabio Miguez vem fazendo nos últimos anos, onde, aqui e ali, há palavras. Parece que, no começo, pensou nas placas de estrada. Os quadros verticais, principalmente, têm quase o mesmo formato e a tipografia semelhante; só que, ele disse, seriam “placas poéticas”. Às vezes até chegam muito perto disso, como naquela pintura em que se sucedem, em intervalos mais ou menos regulares, alinhadas de cima a baixo e na mesma fonte, as palavras “outrora”, “apenas“, “talvez”, e ao lado, também alinhadas e dessa vez em caixa alta, “UM SEGUNDO”, “UMA NATUREZA”, “UM SENTIDO”. A distribuição geral, as cores e as tarjas em que estão contidas permitem várias alternativas de leitura. Por exemplo, esta frase: Um segundo, uma natureza, outrora apenas; talvez um sentido. Ou esta: Um segundo outrora, uma natureza apenas, um sentido talvez.

Tentar logo essas frases provavelmente deve-se à nossa cada vez mais crônica ansiedade por conexões (rápidas, de preferência), mas, de qualquer modo, comum ao mais simples ato de leitura: a expectativa de que, juntando tudo, na certa haverá um sentido – ao menos um. Nessas pinturas pode ser diferente. Temos tempo. As palavras se oferecem, a princípio, cada uma por si. Discretas ali no seu âmbito, algumas delas, quem sabe, quase dão-se por satisfeitas assim. E quando há duas, três ou mais numa tela, ao contrário do que ocorre na vida comum das palavras, é do relativo isolamento (fugaz, diante da nossa impaciência), e só em seguida das relações entre elas, que secretam significações.

 

As palavras e as coisas

Acontece que elas dividem o quadro com outras formas representativas, além das que recortam suas letras, e com áreas planas de cores raramente fortes, por seu turno, indecisas entre serem planos alternados, fundos ou formas já reconhecíveis como as primeiras – sendo, de uma vez, coisas. Que coisas? Bem, para olhos excessivamente adestrados de leitor, em grande parte lembram itens de um dicionário de elementos construtivos – assoalhos, paredes, janelas, coberturas, quase-plantas, quase-elevações, quase-croquis.

É como se na pouca profundidade indicada em cada prancha convivessem pelo menos dois códigos. E, como sempre, as palavras e as coisas não demoram a se procurar, tendo em vista graus de similaridade ou de oposição dentro de seus próprios universos. Em um deles: “gesso / avesso” (mesma sonoridade); “céu / vento” (mesmo campo semântico); “manhã / revelar / véspera” (quase uma frase); “deserto / fonte” (contrários); “tijolo / sono” (discrepantes). Ou em outro universo: formas básicas que mais ou menos se repetem; um telhado de frente e outro de lado; uma janela acima de uma parede de tijolos: esta que se mede com um muro em blocos de pedra; dois ângulos vizinhos que não batem.

E às anteriores somam-se relações entre o universo linguístico e o das puras imagens: “dia” e um céu azul acima daqueles telhados; “claro” próximo de um tom claro; “cimento” ou “pedra” acenando para os elementos construtivos. No entanto, na maioria das vezes, são relações abertas: a qual ou a quais formas corresponde a sequência “manhã /revelar /véspera”, ou só uma dessas palavras? De mais a mais, as faixas de texto pintado – além ou aquém de fazer sentido – dançam um ritmo visual próprio, mas sintonizado ao do restante das imagens na tela. (Ritmos sensivelmente diferentes transcorrem se você abre uma das valises de uma série aparentada, em que placas e outras peças articuladas com palavras vão desdobrando a pintura). Por sua vez, texturas, tons e esquemas visuais chamam os velhos mestres, mestres modernos e alguns mais próximos de nós – aqui dizem Piero, ali Matisse, Johns, Volpi – e abrem-se até, pelas bordas do quadro, aos espaços de fora.

Nesse mundo de pintura, de modo geral, são muitas as ligações possíveis. Porém, nem tantas que tudo acabe se dispersando. O bastante para fazer com que as palavras e coisas e formas quase sem nome estejam dispostas para se dispor ao contato. Em outras palavras, mudando um pouco o ângulo, Fabio Miguez faz diagramas de uma festa na piscina (com música baixa), em que todos estivessem se vendo pela primeira vez. Tudo assim mais ou menos tranquilo. O fundo é raso e, qualquer dúvida, dá para sair pelos quatro lados.